Investimentos e autonomia orçamentária dos reguladores

O setor elétrico sofreu muito nos últimos anos em função do abalo de confiança e credibilidade deflagrado principalmente a partir de setembro de 2012 com a edição da Medida Provisória 579 (MP 579), convertida na Lei 12.783. Olhando para o futuro, todo gesto no sentido de bloquear o uso político do setor deve ser encorajado para que haja a retomada da confiança e dos investimentos.
Intervenções políticas desastrosas como a MP 579 seriam evitadas ou minimizadas se qualquer alteração das bases setoriais fosse precedida de um rito formal conduzido pela agência reguladora.
Agências reguladoras são modernas entidades de Estado cujo papel pode ser definido da seguinte forma: instituições com orientação de longo prazo que buscam equilibrar os interesses de consumidores, empresas e governos, sendo que uma de suas principais atribuições é blindar contratos de longo prazo de interferências políticas.
As agências reguladoras desempenham um papel fundamental em ambientes afetados por uso político Agências reguladoras desempenham papel fundamental em ambientes afetados por uso político.
Citando apenas um exemplo fartamente documentado, a Aneel, reguladora do setor elétrico, tem sido voz firme e corajosamente independente no que se refere à dificuldade de regular a atuação da estatal Eletrobras em função de inúmeras situações de conflito de interesse nas posições assumidas pelo Ministério de Minas e Energia até maio de 2016, ministério este que indica nomes para a diretoria da estatal.
Basta ver os episódios recentes da gestão da RGR (Reserva Global de Reversão), encargo concebido para promover políticas públicas em benefício de todo o setor elétrico, mas que foi durante décadas administrado pela estatal em benefício próprio, e da Medida Provisória 706, que deu às distribuidoras da Eletrobras condições de prorrogação de contratos muito mais favoráveis em relação às demais concessionárias, apesar de as estatais da Eletrobras terem os piores índices de gestão econômico­financeira e de qualidade do setor. Em ambos os episódios o regulador acertadamente confrontou a estatal e, indiretamente, o governo.
No entanto, para que agências reguladoras como a Aneel tenham a força necessária para enfrentar pressões de governos, empresas e consumidores, as mesmas precisam se alicerçar sobre dois pilares: independência decisória e autonomia administrativo­orçamentária.
Os agentes do setor elétrico são testemunhas de que a Aneel tem se empenhado para construir o primeiro pilar com processos decisórios que são referência nacional e global: consultas públicas documentais formuladas com rigor técnico, audiências públicas em múltiplas etapas e com alta transparência, interações que duram meses com as empresas e consumidores para consolidar metodologias regulatórias. Mas o segundo pilar tem sofrido fortes ameaças: a fragilidade do processo que rege o orçamento da Aneel quase comprometeu, em 2016, a autonomia administrativa da agência.
A cobertura das despesas administrativas e operacionais da Aneel se dá por meio de um encargo embutido na conta de luz chamado TFSEE (Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica). Esse recurso tem sido contingenciado pelo governo em patamares superiores a 60%, sendo que em 2016 o orçamento originalmente aprovado no orçamento da União para despesas discricionárias de custeio da Aneel foi da ordem de R$ 120 milhões, mas o governo sucessivamente reduziu esse número para R$ 90 milhões e, em meados de abril o governo forçou nova redução para R$ 44 milhões, o que tecnicamente inviabilizaria a operação da Aneel.
A agência precisou, por exemplo, cancelar convênios com agências estaduais que fazem a fiscalização local e desativar a sua ouvidoria, que fazia o atendimento telefônico de mais de 140 mil chamadas mensais. Depois do sufoco paralisante que durou até maio, o governo acabou liberando, em junho, o orçamento original de R$ 120 milhões em função da aprovação da nova meta fiscal pelo Congresso.
Se o atual governo realmente deseja voltar a atrair investimentos, é preciso acabar com esse tipo de incerteza orçamentária a fim de que os reguladores tenham os recursos necessários para que seus técnicos construam um arcabouço regulatório de alta qualidade, sem ficar dependendo da boa vontade ou à mercê de represálias do governo de plantão, governo que pode se colocar em posições contrárias às da agência, como nos dois exemplos acima envolvendo a Eletrobras.
Este episódio deixa claro que é preciso acabar com os cortes do orçamento da Aneel de forma tão intempestiva e na ordem de grandeza que aconteceram. Nenhum gestor público conseguiria gerir sua agência se começasse o ano com um orçamento para despesas discricionárias de R$ 120 milhões e fosse surpreendido com um novo número de R$ 44 milhões em abril, após transcorrido um terço do ano.
Independentemente do episódio acima, os repetidos contingenciamentos da TFSEE indicam a necessidade de se assegurar que: 1­ se a TFSEE estiver alta, deve ser reduzida em prol da modicidade tarifária; 2­ se a TFSEE estiver corretamente dimensionada, não deveria haver a possibilidade legal de o governo acessar esse recurso.
Uma alternativa para amenizar tanto a discricionariedade governamental quanto a interferência política sobre as agências seria transformá-­las em unidades orçamentárias independentes dos ministérios a elas vinculados. Além disso, dever­-se-­ia estabelecer que eventuais excedentes da arrecadação da TFSEE de cada exercício encerrado sejam revertidos para a modicidade tarifária do ano seguinte por meio da redução de encargos sobre a conta de luz como, por exemplo, a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético).
A retomada dos investimentos só acontecerá se a confiança for restabelecida. E no setor elétrico e em outros setores de infraestrutura regidos por contratos de décadas, ­ contratos que atravessarão inúmeros mandatos de governos ­, as agências reguladoras são peça fundamental para dar solidez institucional a tais contratos. No entanto, agências efetivas e eficientes precisam ser autônomas em todos as suas dimensões, começando pela autonomia orçamentária.
Artigo publicado no jornal Valor de 11 de julho por Claudio J. D. Sales e Eduardo Müller Monteiro, presidente e diretor executivo do Instituto Acende Brasil (www.acendebrasil.com.br)

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