Uma nova lei para o mandado de segurança

Autor: Prof. Cassio Scarpinella Bueno, consultor jurídico do escritório Edgard Leite Advogados Associados e Professor de Direito Processual Civil da PUC/SP.

 

Está em trâmite no Senado Federal o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 125, de 2006, que dá nova disciplina ao mandado de segurança. O projeto teve início na Presidência da República, quando o presidente ainda era Fernando Henrique Cardoso, e foi elaborado pelo então advogado-geral da União, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, e do então ministro da Justiça José Gregori.

Para justificar a mudança no instrumento do mandado de segurança, a exposição de motivos que acompanha o projeto, destaca que a atual lei merece ser revista para incorporar a ela as consolidações doutrinárias e jurisprudenciais e também as modificações legislativas dos mais de 55 anos que nos separam da Lei nº 1.533, de 1951.

A preocupação é acertada e a iniciativa tem muitos méritos. Para se ter uma ideia, o projeto admite, por exemplo, o cabimento do recurso de agravo de instrumento contra as decisões relativas ao pedido de medida liminar e o recurso de agravo (interno) das decisões sobre o pedido de liminar nos mandados de segurança impetrados diretamente nos tribunais. Também se admite expressamente que o mandado de segurança seja impetrado de forma eletrônica, iniciativa sequer concebível pelo legislador de cinco décadas atrás. Por fim, é de se destacar também a disciplina do mandado de segurança coletivo, cuja feição pela qual o conhecemos é uma das importantes inovações trazidas ao direito brasileiro com a Constituição de 1988.

Tais pontos, contudo, já representavam a voz majoritária da doutrina e da jurisprudência mais recentes, que, corretamente, viam a lei do mandado de segurança como um dos componentes (inafastáveis) de um sistema mais amplo de proteção do jurisdicionado contra abusos e ilegalidades da administração pública. Não representam, assim, propriamente nada de novo.

É justamente em outros pontos do projeto, nos quais não se pode colher, na doutrina e na jurisprudência e, mais amplamente, entre os operadores do direito, maior consonância de entendimentos, que, com o devido respeito, não há como emprestar adesão às novas propostas. Alguns exemplos são suficientes para ilustrar a necessidade de uma reflexão maior sobre o assunto.

A concessão de medida liminar, segundo se lê, pode depender de prestação de caução pelo impetrante. É iniciativa que, com o devido acatamento, embora possa ser defendida em casos especialíssimos e devidamente justificados, não pode ser generalizada. É subtrair dos carentes de recursos a possibilidade de uso do mandado de segurança; é impor, no campo tributário, contracautela que, destoando do sistema específico, cria indesejável bis in idem.

A proibição, pura e simples, da concessão de medida liminar e da execução provisória em alguns casos como, por exemplo, pagamentos a servidor público, é desprestigiar a razão de ser do controle jurisdicional dos atos administrativos tal qual delineado pela Constituição. Qual é a razão da proibição da tutela jurisdicional eficaz em tais casos? O que justifica uma lei querer discernir os casos em que aquilo que é dito pelo juiz pode ou não ser cumprido de imediato? Os doutrinadores da lei anterior, de 1964, faziam coro para acentuar que as vedações eram resposta legislativa a abusos cometidos pelos juízes de então. Se é que eles existiram, subsistem tais abusos? Se subsistem, quem os pratica? Quem busca a tutela jurisdicional pelo mandado de segurança e a vê reconhecida, mesmo que liminarmente pelo magistrado, ou quem, desrespeitando a ordem vigente, imprime ao funcionalismo público descabidas restrições à sua remuneração?

Mesmo a suspensão de segurança, instituto que acarreta tantas dúvidas dos meios acadêmicos quanto é frequente o seu uso no foro, é regulamentada pelo projeto sem que tenha sido levada em conta sequer o que mais recentemente foi decidido pelo STF e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da recorribilidade da decisão do Presidente que defere ou que indefere o pedido, tal qual formulado pela pessoa jurídica de direito público. É o caso de desconsiderar o que aquelas Cortes, mais recentemente, entenderam sobre o tema e que as levou, até mesmo, a cancelarem suas Súmulas a respeito da matéria?

No âmbito coletivo, quer o projeto que o impetrante individual, para se beneficiar de uma decisão a ser proferida em mandado de segurança coletivo, desista de sua impetração. Trata-se de regra que contraria o sistema de processo coletivo brasileiro que tem se desenvolvido e estabilizado desde sua potencialização com a Constituição de 1988 e, no plano infraconstitucional, com o advento do Código do Consumidor, porque tem tudo para criar, para o impetrante individual, uma terrível armadilha. É supor que à desistência de seu mandado de segurança, siga-se uma decisão contrária do mandado de segurança coletivo. Em tais casos, a sorte do indivíduo estará selada, máxime porque o projeto mantém o (inconstitucional) prazo decadencial de 120 dias para a impetração.

Atualizar e aprimorar o texto das leis anteriores sobre o mandado de segurança – são estas as expressões utilizadas na "exposição de motivos" do projeto -, é algo cuja pertinência, repita-se, dificilmente pode ser negada. Minimizar a grandeza constitucional do mandado de segurança, contudo, é tarefa que não pode ser admitida a qualquer título; não depois de tanto tempo para termos aprendido, todos, sua razão de ser desde sua posição constitucional ímpar.

O mandado de segurança não pode renascer velho. Uma nova lei de mandado de segurança deve espelhar e transpirar os ares de hoje. O processo do mandado de segurança não pode, por definição, conspirar contra aquele que tem razão na contra-mão do que as mais recentes reformas do Código de Processo Civil têm pregado e posto em prática.

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