Fonte: Consultor Jurídico – 21.03.2011
A contratação, por escritórios de advocacia de grande porte, de correspondentes para tarefas burocráticas em locais afastados sempre foi uma maneira de concentrar esforços no que realmente gera retorno. Elaboração de estratégias e peças ficam por conta da banca de renome, enquanto a protocolização de pedidos, a obtenção de cópias de processos e o comparecimento a audiências em varas distantes são feitos pela banca local. O costume, porém, pode causar dor de cabeça quando o cliente é o poder público.
A prática chegou a levar o escritório Siqueira Castro Advogados a responder a uma Ação Civil de Improbidade Administrativa movida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Contratada em 2003 pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos para serviços jurídicos, a banca foi processada por contar com ajuda para fazer o trabalho — o que põe em xeque a prática, usual em relações privadas.
O Ministério Público levantou a hipótese de enriquecimento ilícito e subcontratação irregular depois de um erro do escritório Eliel de Mello & Vasconcelos, correspondente do Siqueira Castro. A banca perdeu demandas trabalhistas da Cedae por não recolher custas judiciais dos processos, o chamado “preparo”. O deslize foi comunicado pelo Tribunal Regional do Trabalho do Rio à Promotoria, que viu a transferência da tarefa como indevida. Contratado em 2003 sem licitação — devido a inexigibilidade por notória especialização — para representar a Cedae em causas trabalhistas e nos Juizados Especiais, o Siqueira Castro assinou um aditivo ao contrato inicial com a empresa pública para permitir a prestação de parte dos serviços na área trabalhista pelo correspondente Eliel de Mello & Vasconcelos. Segundo o escritório, o reforço foi pedido pela Cedae, e admitido pelo Tribunal de Contas estadual.
Porém, para o MP, ao delegar trabalho e receber o dinheiro correspondente, o Siqueira Castro enriqueceu ilicitamente às custas do poder público. A Cedae, por sua vez, foi acusada de admitir sem licitação a contratação do segundo escritório.
Ao receber a ação, a juíza Margaret de Olivaes Valle dos Santos, da 6ª Vara de Fazenda Pública da Capital, afirmou que só a abertura do processo esclareceria os indícios de “burla ao artigo 25, inciso II, da Lei 8.666/1993 com a suposta terceirização dos serviços contratados”, como alegou a Promotoria. A decisão saiu em março do ano passado sem, porém, qualquer menção a favor ou contra as acusações. Em maio, o Tribunal de Justiça do Rio rejeitou recurso do Siqueira Castro contra o início da ação, primeiro monocraticamente pelo desembargador Rogério de Oliveira Souza, relator, e depois em decisão da 9ª Câmara Cível.
Embora o processo ainda sequer tenha começado a reunir informações para a fase probatória, uma questão já emerge: escritórios de advocacia contratados pelo Estado podem prestar serviços usando correspondentes?
Trabalho em excesso
Envolvidos no processo já apresentaram seus argumentos. À Justiça, o contador e perito judicial Sidney Roberto Szabo, e o engenheiro Aluizio Meyer de Gouvêa Costa — acusado de aceitar, em nome da Cedae, a subcontratação do Eliel de Mello —, afirmaram não ter havido terceirização, mas apenas “substabelecimento de poderes”. Segundo as declarações, a prestação dos serviços exigia maior mobilidade dos advogados, o que admitiria a ajuda de outro escritório. Costa pediu demissão da Cedae em 2005. A ConJur tentou contato com o escritório Eliel de Mello e com a Procuradoria-Geral do Estado, mas não obteve retorno.
Em sua defesa, o Siqueira Castro garantiu que ficou com o maior volume dos processos da empresa — 78% das ações trabalhistas —, e que apenas parte do acervo foi repassada ao escritório menor: 1.123 casos. No processo, a Cedae complementou que todo o trabalho intelectual era de responsabilidade do Siqueira Castro, e que apenas o comparecimento às centenas de audiências marcadas pela Justiça do Trabalho tinham a participação do Eliel de Mello. Ainda de acordo com o Siqueira Castro, o Tribunal de Contas do Estado aprovou a decisão de contratar o correspondente, formalizada por meio de um termo aditivo ao contrato.
“Fomos o primeiro escritório do Rio de Janeiro a ter estrutura montada para atender causas nos Juizados Especiais, e somos o maior escritório do Brasil na área trabalhista, em número de advogados, estagiários, assistentes administrativos e computadores”, afirma o advogado Fabio Kurtz, sócio do Siqueira Castro. “Esse arcabouço técnico e profissional permite a contratação por inexigibilidade de licitação.”
O acordo entre o Siqueira Castro e a Cedae previa representação judicial remunerada em R$ 65 por ação. A quantidade variou, de acordo com a banca, de 4 mil, em 2003, para 6,9 mil, em 2010. Segundo o Ministério Público, o contrato original vedava o substabelecimento de poderes, a não ser para subcontratação de correspondentes em Brasília, para representação perante o Tribunal Superior do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal. Foi o aditivo firmado no ano seguinte — a pedido da Cedae, segundo o Siqueira Castro — que suspendeu a vedação e permitiu a subcontratação. Escolhido também sem processo licitatório, o Eliel de Mello recebeu R$ 50 por processo ao representar o Siqueira Castro nos fóruns em algumas demandas, entre 2004 e 2007.
“O que ocorreu foi apenas a outorga de substabelecimentos, com vistas a contar com a colaboração do escritório na realização de diversas diligências e audiências que eram marcadas diariamente no âmbito da Justiça do Trabalho”, explicaram os advogados Carlos Roberto de Siqueira Castro, Adriana Conrado Zamponi e Daniela Soares Domingues, em defesa entregue à Justiça. Segundo eles, a elaboração de teses e estratégias de defesa e as sustentações orais eram de exclusiva competência da banca principal. “A atuação do Eliel de Mello se limitava à contribuição na presença física nas audiências e alguns atos processuais, sem retirar do Siqueira Castro sua supervisão geral do patrocínio judicial.”
Para a banca, o contrato de prestação de serviços, firmado com a Cedae, não se confunde com o contrato de mandato, celebrado com o segundo escritório. “O primeiro é celebrado intuitu personae”, explicam os advogados. Ou seja, a contratação pelo poder público é personalíssima, enquanto que a subcontratação do correspondente é meramente mandamental, para atuar como procurador ou representante. “Mandatos são outorgados aos advogados sócios, associados ou prestadores de serviço.”
A Promotoria responsável pela tutela coletiva no Rio contesta. O argumento é o de que, como o motivo que levou o Siqueira Castro a ser escolhido sem licitação foi sua notória especialização, ele não poderia incumbir outro escritório de tarefas como o comparecimento a audiências. O órgão também ajuizou inquérito contra o método de escolha da Cedae, alegando que causas trabalhistas e de Juizados não exigem conhecimento técnico específico que justifique a dispensa de licitação.
Atividade intelectual
O uso de correspondentes na execução de contratos com o poder público depende de fatores como o objeto contratado, de acordo com a especialista em Direito Administrativo Márcia Buccolo, sócia do escritório Edgard Leite Advogados. Ela comentou a questão em tese. “Retirar uma certidão é atividade mecânica, despersonalizada, e não um trabalho intelectual. Não precisa de um advogado”, afirma. No entanto, segundo ela, comparecer em audiências demanda a presença do profissional. “Se o contrato for com a administração pública, não pode haver substituição, mesmo que supervisionada, salvo com previsão expressa.”
Já para Fernando Menezes, professor de Direito Administrativo na Universidade de São Paulo, o uso de correspondentes por escritórios faz parte da rotina de trabalho, e a praxe não é desconhecida de quem solicita os serviços. “Mas o contrato tem que prever essa possibilidade”, lembra, sem se referir ao caso concreto. “Se o escritório precisa cobrir as comarcas de todo o interior, será muito mais caro ao Estado se ele não puder contar com um correspondente.”
Contratar, sem licitação, uma banca para acompanhar demandas trabalhistas ou em Juizados pode trazer dor de cabeça. Isso porque, segundo especialistas, é questionável que a tarefa admita escritórios tão experts que dispensem uma seleção. “Até que ponto é singular defender causas na Justiça do Trabalho ou em Juizados Especiais?”, questiona o também professor de Direito Administrativo da USP Gustavo de Oliveira, consultor em Direito Público, que não mencionou a situação específica. “Não teria cabimento contratar o melhor escritório do mundo para, por exemplo, cobrar títulos extrajudiciais”, concorda Fernando Menezes.
Se a contratação causa dúvidas, a subcontratação ainda mais. “O poder público às vezes não planeja a licitação, e pede mais durante a prestação. Mas a subcontratação precisa ter previsão no contrato original”, afirma Oliveira. O que favorece as subcontratações, no entanto, é a jurisprudência. “O Superior Tribunal de Justiça vinha exigindo que só fossem contratados escritórios com sede no local onde o serviço seria prestado, mas isso vem mudando”, afirma ele. Segundo Oliveira, serviços pedidos pela União, por exemplo, têm âmbito nacional, o que torna complicado aplicar o antigo entendimento do STJ.
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