Autor: Philippe Ambrosio Castro e Silva, advogado integrante de Edgard Leite Advogados Associados.
Verifica-se há muitos anos entre juristas e acadêmicos um crescente debate sobre o acerto de decisões judiciais que reconhecem a perda do objeto de mandado de segurança impetrado contra ilegalidades praticadas no âmbito de certames licitatórios, em função da superveniente adjudicação do contrato.
Para uma melhor visualização do tema, imagine-se, inicialmente, que em um procedimento licitatório houve a declaração de inabilitação de certa empresa, a qual, inconformada, impetra mandado de segurança sob a alegação de que a decisão da comissão de licitação seria contrária ao que dispõe a Lei, estando, por conseguinte, viciada. A liminar pleiteada para prosseguir no certame é concedida pelo magistrado.
Posteriormente — porém, ainda antes do julgamento do processo judicial —, a Administração encerra a licitação e adjudica o contrato a um terceiro, cuja proposta alcançou melhor classificação. Surge, com isso, a dúvida: teria o mandado de segurança perdido seu objeto?
Imagine-se, outrossim, hipótese diversa: o contrato é adjudicado à própria empresa impetrante, eis que ofereceu a melhor proposta. Estaria o mandado de segurança fadado à extinção por perda de interesse de agir da impetrante?
Em ambos os casos, tanto a jurisprudência quanto a doutrina pátria costumam divergir.
Aqueles que defendem a perda do objeto — posição majoritária, aliás, firmada no Superior Tribunal de Justiça – STJ — pautam-se no que se costumou designar por “teoria do fato consumado”, ou seja, a finalização do certame licitatório consolidaria a situação fática e impediria a discussão sobre atos pretéritos, ensejando, assim, a perda superveniente do interesse de agir da impetrante.
Nesse sentido, é cediço que uma das condições da ação — isto é, um de seus requisitos primordiais — consiste no interesse de agir do autor (art. 267, VI, Código de Processo Civil), que, em síntese, nada mais é do que a necessidade de se obter um provimento judicial e, ainda, que tal provimento seja útil para o caso concreto levado a conhecimento do Poder Judiciário.
Assim, as decisões judiciais que tendem a reconhecer a perda do objeto discorrem que tanto a liminar concedida quanto a sentença de mérito que a confirmaria não seriam úteis para o impetrante, tendo em vista o fato já consumado, qual seja, a adjudicação do contrato, consoante precedentes do STJ(1).
Por outro lado, há quem considere inviável a declaração de perda do objeto do mandado de segurança, haja vista que, além de não se poder invocar a teoria do fato consumado, o impetrante ainda teria interesse em ver confirmada a liminar que lhe fora concedida e, por fim, reconhecida a ilegalidade praticada no certame licitatório — pedido principal do mandado de segurança —, a qual, aliás, não deixa de existir em virtude da adjudicação do contrato.
Além disso, a confirmação da decisão liminar, por sentença, teria importantes conseqüências práticas em ambos os casos acima exemplificados, a saber.
Na hipótese de a impetrante — autorizada a participar do restante da licitação por força de decisão liminar — não se sagrar vencedora, observa-se que ainda lhe subsiste interesse no julgamento do mandado de segurança, a fim de que a ilegalidade reconhecida pelo Judiciário — em caráter meramente sumário e precário pela decisão liminar — seja confirmada por sentença, ganhando, assim, o “status” de definitividade.
Diante disso, a classificação final da empresa impetrante no certame torna-se definitiva e ausente de vícios, possibilitando-lhe, inclusive, posterior contratação pela Administração, se, por algum motivo superveniente, o contrato firmado com a empresa originalmente vencedora venha a ser rescindido, conforme dispõe o art. 24, XI, da Lei Federal nº 8.666/93.
Nesse sentido, aliás, já decidiu o Tribunal Regional Federal da Primeira(2) e da Segunda(3) Região.
Finalmente, não se pode olvidar do legítimo interesse que a empresa impetrante, em se sagrando vencedora do certame, também possui quanto à confirmação da liminar que lhe possibilitou participar das demais fases da licitação.
Essa é, a propósito, a abalizada opinião de Cassio Scarpinella Bueno(4) e de Hely Lopes Meirelles(5).
Isso porque o eventual reconhecimento da perda do objeto da ação acarreta a denegação da segurança e a extinção do processo sem resolução do mérito, ou seja, não há apreciação pelo Judiciário do pedido principal formulado pela impetrante — reconhecimento da ilegalidade ou abuso de poder —, perdendo eficácia, automaticamente, a decisão liminar anteriormente concedida, “retroagindo os efeitos da decisão contrária”, nos termos da conhecida Súmula nº 405 do Supremo Tribunal Federal – STF.
É inequívoco, portanto, o risco a que se submeteria a empresa impetrante, pois, em função da denegação da segurança e da cessação da liminar, o ato coator impugnado voltaria a surtir efeitos desde o momento em que restou suspenso, acarretando a retomada da inabilitação da empresa impetrante que se sagrara vencedora do certame.
Além disso, seria ainda possível que terceiros invocassem a “inabilitação superveniente” da empresa impetrante, com base no art. 43, § 5º, da Lei Federal nº 8.666/93, que dispõe, por seu turno, acerca da possibilidade de a Administração rever questões relacionadas com a habilitação do licitante, mesmo após o julgamento do certame, caso sobrevenham fatos supervenientes.
Desse modo, passaria a existir um vício no decorrer do procedimento licitatório capaz de gerar a nulidade do próprio contrato administrativo, segundo dispõe o art. 49, § 2º, da Lei Federal nº 8.666/93.
Atento a essas circunstâncias e, ainda, contrariando a jurisprudência firmada pela Segunda Turma do STJ, ao decidir o REsp 1.059.501/MG, o Min. Mauro Campbell Marques destacou a impossibilidade de reconhecimento de perda do objeto do mandado de segurança, exatamente porque “se o procedimento licitatório é eivado de nulidades de pleno direito desde seu início, a adjudicação e a posterior celebração do contrato também o são (art. 49, § 2º, da Lei n. 8.666/93)”.
Ainda na mesma oportunidade, salientou o ilustre Ministro que “entendimento diverso equivaleria a dizer que a própria Administração Pública, mesmo tendo dado causa às ilegalidades, pode convalidar administrativamente o procedimento, afastando-se a possibilidade de controle de arbitrariedades pelo Judiciário (malversação do art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República vigente).”
Como visto, há inúmeras conseqüências práticas decorrentes da denegação da segurança com base na perda do objeto do mandado de segurança, as quais não são solucionadas nem mesmo com a aplicação da mencionada “teoria do fato consumado”, salvo, vale destacar, as hipóteses em que, por força do decurso do tempo de tramitação do mandado de segurança, o contrato administrativo anteriormente firmado já foi executado ou se encontra prestes a ser concluído.
Aliás, mesmo nessa ressalva poder-se-ia verificar uma exceção, qual seja, a hipótese de a empresa impetrante sagrar-se vencedora do certame, executar o contrato e, neste ínterim, seu mandado de segurança ser denegado por perda do objeto. Neste caso, a validade do contrato administrativo poderia ser questionada — mesmo sendo regularmente executado —, o que teria o condão de ensejar ao particular a situação extrema de se ver condenado a devolver os valores recebidos a título de lucro, sem se olvidar de outras cominações decorrentes de eventuais alegações de infração à Lei de Improbidade Administrativa.
Assim sendo, diante de todas as conseqüências acima expostas, sem prejuízo de outras e, ainda, com o devido respeito às opiniões diversas, concluímos ser inviável, via de regra, a alegação e o reconhecimento de perda do objeto do mandado de segurança no âmbito de licitações em virtude da adjudicação do contrato, sobretudo quando há o prévio deferimento, pelo magistrado, do pedido liminar formulado pelo impetrante, sendo necessária sua confirmação por sentença para que seus efeitos perdurem de maneira definitiva.
Referências:
PROCESSUAL CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – LICITAÇÃO – PERDA DE OBJETO.
1. A jurisprudência desta Corte considera inviável mandado de segurança, por perda de objeto, se no processo licitatório já ocorreu a adjudicação do contrato. Precedentes.
2. Recurso especial não provido.
(REsp 984.968/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 12/05/2009, DJe 29/05/2009)
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DE EXTINÇÃO DO PROCESSO. CABIMENTO. LICITAÇÃO. CONSUMAÇÃO. PERDA DO OBJETO.
1. É cabível recurso ordinário, tanto da decisão denegatória em mandado de segurança quanto daquela que o considera prejudicado ou indefere o pedido, extinguindo-o sem análise do mérito.
2. Impetrado Mandado de Segurança visando a impugnar o curso de procedimento licitatório, a superveniência de conclusão do respectivo certame, com a assinatura do contrato e a entrega do objeto licitado, posto não lograr êxito a tentativa do Recorrente de paralisá-lo via deferimento de pleito liminar, conduz à extinção do writ por falta de interesse processual superveniente, em face do fato consumado.
3. Precedentes desta Corte: ROMS 14938 / PR ; deste relator, DJ de 30/06/2003; MS 5863 / DF ; Rel. Min. MILTON LUIZ PEREIRA DJ de 05/06/2000; RMS 12210, Rel. Min. José Delgado, DJ de 19/02/2002.
4. Ausente a utilidade do writ, requisito que, juntamente com a necessidade da tutela, compõe o interesse de agir, impõe-se a extinção do processo sem análise do mérito.
5. Recurso desprovido.
(RMS 17883/MA, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 06/10/2005, DJ 14/11/2005 p. 182)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO EXTINÇÃO DO PROCESSO POR PERDA DO OBJETO. ART. 267, VI, DO CPC.
1 – Em princípio, a impetrante, classificada em segundo lugar no procedimento licitatório indicado na exordial, tem legítimo interesse no julgamento do mérito da segurança, diante da possibilidade de contratação para fornecer o objeto da licitação, em casos de substituição ou desistência da empresa vencedora.
(…)
(TRF-1. Apelação em MS nº 96.01.37607-0/DF. Rel. Juiz convocado Antônio Sávio Chaves. 2ª Turma. j. 19.09.00)
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. LICITAÇÃO. CONCLUSÃO DO CERTAME. CARÊNCIA DE AÇÃO AFASTADA. ART. 515, § 3º, CPC. REGULARIDADE NA DOCUMENTAÇÃO APRESENTADA. INEXISTÊNCIA DE PROVA A ENSEJAR DESCLASSIFICAÇÃO DA VENCEDORA DA TOMADA DE PREÇOS.
1. Não há que se falar em ausência de interesse da impetrante diante do encerramento do certame licitatório, levando em conta que a mesma obteve a segunda colocação, com possibilidade de executar o serviço em caso de rescisão contratual.
(…)
(TRF-5. Apelação em MS nº 2001.84.00.012615-4/RN. Rel. Des. Luiz Alberto Gurgel de Faria. 4ª Turma. j. 02.12.2003)
“Situação corriqueira no foro ilustra bem esta hipótese. Imagine-se licitação em que determinado concorrente obteve liminar que o reconduziria ao certame, anulando ou, ao menos, suspendendo os efeitos da declaração de sua inabilitação jurídica. Com seu retorno ao processo licitatório, as propostas comerciais são abertas e a sai é considerada a mais proveitosa à Administração. Considerar que seu mandado de segurança, que objetivava a declaração de nulidade de sua inabilitação, perdeu o objeto diante da ‘satisfação’ material (recondução ao certame e abertura das propostas de preço) é conclusão equivocada. Aquele writ precisa ser julgado para que se possa obter, perante o Poder Judiciário, a resposta (definitiva) de o impetrante ter ou não condições subjetivas de participar do certame e, consequentemente, contratar com o Poder Público. A declaração de sua vitória no certame, a justificar o desfecho (final e definitivo) do mandado de segurança. Só assim é que será possível, ao mesmo tempo, ficar a responsabilização do Estado, do agente estatal (autoridade coatora) e do impetrante, como já discutido precedentemente, no tópico n. 1, supra.”
(SCARPINELLA BUENO, Cassio. Liminar em mandado de segurança: um tema com variações. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 356)
“O atendimento do pedido antes da sentença tem suscitado dúvidas sobre se deve ser julgada a impetração pelo mérito ou considerado o perecimento do objeto. Entendemos que a segurança há que ser julgada pelo mérito, pois a invalidação do ato impugnado não descaracteriza sua ilegalidade originária; antes, a confirma. O julgamento de mérito torna-se necessário para definição do direito postulado e de eventuais responsabilidades da Administração para com o impetrante e regresso contra o impetrado. Só se pode considerar perecido o objeto quando, por ato geral, a Administração extingue a causa da impetração, como, p. ex., ao desistir de uma obra ou ao suprimir o cargo que estivesse em licitação ou concurso, e sobre o julgamento houvesse mandado de segurança para alterar a classificação dos concorrentes. Nessas hipóteses, sim, ocorrerá perecimento do objeto da segurança.”
(MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 121)
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