Por Carolina Nardy Gabriel
Um tema recorrente no âmbito das autuações do Procon-SP ao setor supermercadista consiste na imputação de publicidade enganosa, pela ausência de estoque de produtos veiculados em folheto promocional no ato da fiscalização.
As situações são as mais diversas: desde fiscalizações feitas horas após o início das promoções (ao final da tarde, por exemplo), como também fiscalizações promovidas dias após o início da vigência das ofertas veiculadas.
Vale destacar que muitas das promoções analisadas são aquelas de extensa veiculação, como no período da Black Friday, em que os consumidores, dotados da informação, se programam para que possam adquirir os produtos a melhores preços, nas oportunidades que lhe são conferidas.
Nesse contexto, deve-se analisar caso a caso com cautela: como foi realizada a veiculação da oferta? Havia alguma ressalva no folheto promocional no sentido de que a promoção seria válida enquanto durassem os estoques? Uma empresa que cumpriu com o dever de informar, explicitando o período da promoção e suas condições terminativas deve ser penalizada em montante extremamente oneroso, em razão de proteção exacerbada e desproporcional ao consumidor?
O Código de Defesa do Consumidor preconiza, em seu artigo 6º, a necessidade de fornecimento, aos consumidores, de informações adequadas e claras sobre os diferentes produtos e serviços, com as devidas especificações.
No mesmo sentido, o artigo 31, do mesmo diploma legal, determina que a oferta de produtos ou serviços “deve assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados”, enquanto o artigo 30 prevê que “toda informação ou publicidade, suficientemente precisa veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.
Diante desse contexto, é evidente que os fornecedores devem, necessariamente, tomar todas as cautelas quando da veiculação de ofertas aos consumidores, evitando qualquer interpretação dúbia sobre o anúncio.
Por exemplo, se constar expressamente do folheto promocional o período em que estará vigente, bem como condição alternativa consistente em frases semelhantes a “ou enquanto durarem os estoques” é evidente que não se está diante de qualquer disposição apta a ensejar qualquer dúvida ao consumidor. A abrangência da promoção também deve ser observada, na medida em que há casos nos quais as ofertas são válidas para todas as lojas do estado.
Além da veiculação da oferta em si, que deve ser analisada com critério, deve-se pontuar que a dinâmica dos estabelecimentos, especialmente no que diz respeito aos estoques, deve ser considerada. Se os estoques são integrados, o exaurimento de um produto em determinada loja não implica no descumprimento da promoção veiculada.
Ademais, diversos são os casos em que, apesar de as empresas autuadas demonstrarem, por meio de telas de controle de estoques e notas fiscais, a comercialização dos produtos, o órgão fiscalizador opta, por liberalidade e transbordando o poder discricionário que lhe compete, pela manutenção da multa imposta.
Não se pode entender como razoável a manutenção de sanção pecuniária em razão de auto de constatação lavrado pela fiscalização horas após o início de uma promoção, ou até mesmo dias após a vigência das ofertas.
Se há elementos suficientes para que se conclua pelo cumprimento da oferta e inequívoca comercialização dos produtos, não se pode admitir a manutenção da penalidade.
De rigor pontuar que a discricionariedade jamais pode se sobrepor à legalidade e, de modo a coibir abusos, está sujeita ao controle judicial, como bem explica Celso Antônio Bandeira de Mello: “nada há de surpreendente, então, em que o controle judicial dos atos administrativos, ainda que praticados em nome de alguma discrição, se estenda necessária e insuperavelmente à investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato. Nenhum empeço existe a tal proceder, pois é meio — e, de resto, fundamental — pelo qual se pode garantir o atendimento da lei, a afirmação do direito”.
Nesse sentido, o TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) já procedeu à anulação de autos de infração lavrados pelo Procon por suposto descumprimento à oferta, conforme ementas abaixo transcritas:
ATO ADMINISTRATIVO. Auto de Infração. Multa aplicada pelo Procon com base no artigo 30 do CDC, pela suposta veiculação em folheto promocional, de ofertas de produtos, válidas para outubro de 2019, que não foram localizados em um dos estabelecimentos da ré quando da fiscalização. Infração ao artigo 30 do CDC não configurada. Existência de informação no anúncio no sentido de que alguns produtos poderiam não estar disponíveis em todas as lojas, orientando o consumidor a consultar o gerente da loja para maiores informações.
Comprovação pela apelada de que no mês da promoção comercializou os produtos anunciados, bem como que os tinha em estoque em lojas da sua rede. Oferta veiculada que não induziu o consumidor a erro, pois ausente omissão relevante, tampouco potencial lesivo ao consumidor. Auto de infração que não pode subsistir. Sentença mantida. Recurso improvido. (TJ-SP; Apelação Cível 1003279-16.2021.8.26.0624; relator (a): Claudio Augusto Pedrassi; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro de Tatuí — 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/5/2022; Data de Registro: 17/5/2022).
“ATO ADMINISTRATIVO. Auto de Infração. Multa aplicada pelo PROCON com base no artigo 30 do CDC, pela suposta veiculação em folheto promocional, de ofertas de produtos, válidas para setembro de 2018, que não foram localizados em um dos estabelecimentos da ré quando da fiscalização. Infração ao artigo 30 do CDC não configurada. Existência de informação no anúncio no sentido de que alguns produtos poderiam não estar disponíveis em todas as lojas, orientando o consumidor a consultar o gerente da loja para maiores informações. Comprovação pela Apelada de que no mês da promoção comercializou os produtos anunciados, bem como que os tinha e, estoque em lojas da sua rede. Oferta veiculada que não induziu o consumidor a erro, pois ausente omissão relevante, tampouco potencial lesivo ao consumidor. Auto de infração que não pode subsistir. Sentença mantida. Recurso improvido”. (TJ-SP; Apelação Cível 1004600-89.2020.8.26.0602; relator (a): Claudio Augusto Pedrassi; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Foro de Sorocaba — Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 31/8/2021; Data de Registro: 1/9/2021).
“ATO ADMINISTRATIVO. Auto de Infração. Multa aplicada pelo Procon com base no artigo 30 do CDC, pela suposta veiculação em folheto promocional, de ofertas de produtos, válidas para setembro de 2018, que não foram localizados em um dos estabelecimentos da ré quando da fiscalização. Infração ao artigo 30 do CDC não configurada. Existência de informação no anúncio no sentido de que alguns produtos poderiam não estar disponíveis em todas as lojas, orientando o consumidor a consultar o gerente da loja para maiores informações. Comprovação pela Apelada de que no mês da promoção comercializou os produtos anunciados, bem como que os tinha e, estoque em lojas da sua rede. Oferta veiculada que não induziu o consumidor a erro, pois ausente omissão relevante, tampouco potencial lesivo ao consumidor. Auto de infração que não pode subsistir. Sentença mantida. Recurso improvido.”
Trecho do voto: “Nesse passo, não se verifica qualquer desconformidade entre a oferta veiculada e a situação de fato, pois havia sido informado no anúncio que alguns produtos poderiam não estar disponíveis em todas as lojas, caso em que o gerente deveria ser consultado (o que possibilitaria verificar a existência de estoque em outra loja da rede para cumprimento da oferta veiculada). Da maneira como veiculada a oferta, essa não induziu o consumidor a erro, pois ausente omissão relevante, como já colocado, tampouco potencial lesivo ao consumidor. De fato, a informação estava presente de forma clara e precisa na oferta veiculada, ainda que constasse no rodapé do anúncio. Não houve omissão ou distorção de informação. Ademais, a eventual indisponibilidade de algum dos produtos em uma das lojas da rede não modificaria a intenção do consumidor, pois apesar de poder lhe causar alguma dificuldade para se locomover até outra loja, não impediria de obter o preço veiculado na oferta. Daí decorre a inexistência de potencialidade lesiva na alegada ausência dos produtos na loja fiscalizada.” (TJ-SP. Apelação Cível 1004600-89.2020.8.26.0602. Relator(a): Claudio Augusto Pedrassi Comarca: Sorocaba Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 31/8/2021 Data de publicação: 01/09/2021).
Deste modo, conclui-se que, uma vez cumprido o dever de informação que compete ao fornecedor, bem como demonstrado o cumprimento à oferta veiculada, o órgão fiscalizador não pode se valer de seu poder discricionário, tampouco da presunção de veracidade de seus atos, para manter as multas aplicadas em casos nos quais não houve qualquer violação à legislação consumerista passível de penalização. É necessária uma avaliação rigorosa e crítica caso a caso, considerando todos os elementos fáticos trazidos pela empresa autuada, possibilitando a adequada fiscalização ao cumprimento da lei.
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[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 995.
Carolina Nardy Gabriel é advogada no escritório Edgard Leite Advogados Associados.
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