As inconstitucionalidades do regime de pagamento de precatórios instituído pela Emenda Constitucional nº 62/2009

Autor: Amauri Feres Saad, advogado integrante de Edgard Leite Advogados Associados.

 

Em obra já clássica, Marcelo Neves aborda o fenômeno da constitucionalização simbólica, indicando que uma de suas funções é servir como “fórmula de compromisso dilatório”(1). Isto significa que o legislador (ordinário ou constituinte derivado) por vezes pode (consciente ou inconscientemente) emitir normas com o simples objetivo de obter a pacificação social por meio da transferência, para um futuro indefinido, da solução de um problema socialmente relevante. No caso dos precatórios judiciais, nossa história constitucional parece caminhar nesse sentido.

Para ficarmos apenas no regime jurídico do instituto a partir da promulgação da Constituição de 1988, temos que a disciplina original da matéria era razoavelmente simples e rígida, ficando determinado que seria “obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, data em que terão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte” (art. 100, §1º). A regra de transição (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, art. 33) previa que os precatórios pendentes de pagamento na data de promulgação da Constituição poderiam ser pagos “com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989”.

Em face do contumaz desrespeito, por parte da maioria dos entes federativos, das regras atinentes ao pagamento de precatórios, a solução política encontrada foi justamente a alteração do texto constitucional, com vistas a flexibilizar e prorrogar o prazo para que as obrigações do Poder Público fossem saldadas. Assim, a Emenda Constitucional nº 30/2000 introduziu o art. 78 no ADCT, segundo o qual os precatórios pendentes na data de promulgação da Emenda “e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos”.

Seguindo o padrão do constituinte derivado de institucionalizar – a cada década – o “calote” no tocante aos precatórios, sobreveio, em dezembro de 2009, a Emenda Constitucional nº 62, que, entre outras novidades, determina: (i) a criação de uma espécie de precatórios alimentares de natureza prioritária sobre todos os demais, a saber, cujo credor tenha na data de emissão do precatório idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos ou seja portador de doença grave (art. 100, §2º); (ii) a criação da compensação obrigatória entre os créditos contra o Poder Público e os débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa (excetuando-se aqueles com exigibilidade suspensa) que o credor de precatórios eventualmente possua em face do mesmo ente federativo; (iii) possibilidade de o credor dos precatórios utilizar tal crédito para pagamento na compra de imóveis do mesmo ente federativo; (iv) a atualização do valor dos precatórios será realizada, a partir da promulgação da Emenda Constitucional, pelo índice oficial de remuneração da caderneta de poupança, e, no caso dos juros moratórios, estes também seguirão o índice da caderneta de poupança, vedando-se a aplicação de juros compensatórios; (v) a possibilidade de cessão do crédito a terceiros, independentemente de anuência do ente devedor, bastando para tanto a comunicação escrita dirigida a este e ao tribunal de origem, e ressalvado que o eventual enquadramento do crédito cedido na categoria de precatórios alimentares não se aplica ao adquirente; e (vi) a possibilidade de, mediante autorização legislativa, a União assumir o pagamento de precatórios emitidos contra Estados, Distrito Federal e Municípios.

A Emenda Constitucional nº 62/2009 introduziu ainda o art. 97, no ADCT, procurando disciplinar o dito “regime especial” de pagamento dos precatórios emitidos até a data de publicação da Emenda, que consiste, genericamente, em duas alternativas facultadas aos entes federativos: (i) pagamento de todos os precatórios pendentes, parceladamente, em até 15 (quinze) anos; ou (ii) depósito em conta especial administrada pelo tribunal de justiça local, dos percentuais de no mínimo (a) 1,5% (um e meio por cento) da receita corrente líquida (Estados das regiões norte, nordeste, centro-oeste e o Distrito Federal) ou 2% (dois por cento) da receita corrente líquida (Estados das regiões sul e sudeste), ou (b) 1% (um por cento) da receita corrente líquida (municípios das regiões norte, nordeste e centro-oeste) ou 1,5% (um e meio por cento) da receita corrente líquida (municípios das regiões sul e sudeste). Os percentuais máximos e mínimos estabelecidos variarão conforme o estoque de precatórios pendentes do ente federativo corresponda, respectivamente, a menos ou mais que 35% (trinta e cinco por cento) da receita corrente líquida. Em ambas as configurações do dito “regime especial”, pelo menos 50% (cinqüenta por cento) dos recursos deverão ser destinados ao pagamento dos precatórios na ordem cronológica, respeitada a prioridade dos precatórios alimentícios, sendo o valor restante utilizado no pagamento dos créditos sujeitos ao leilão (por deságio) ou àqueles envolvidos em acordos firmados no âmbito das câmaras de conciliação.

Até o momento, foram ajuizadas duas ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, impugnando quase que a totalidade das alterações veiculadas por meio da Emenda Constitucional nº 62/2009(2). Ambas as ações, que contêm pedidos de liminar para afastar a aplicabilidade das novas regras, encontram-se pendentes de apreciação pelo ministro relator. Em breve síntese, as alegações de inconstitucionalidade veiculadas por meio das referidas ADIs são as seguintes: (i) violação ao princípio da separação de poderes (CF, art. 2º), na medida em que os efeitos da alteração constitucional tornam sem efeito a decisão judicial que determine à Fazenda Pública o pagamento do precatório (nas condições nela estabelecidas, incluindo-se aí a questão dos índices de correção monetária e os juros moratórios e compensatórios); (ii) violação da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXXVIII), na medida em que, ainda que pautados por razões de celeridade, inúmeros processos terão retirada a sua eficácia porquanto serão alterados pela Emenda Constitucional nº 62/2009; (iii) violação do princípio do acesso à Justiça (CF, art. 5º, XXXV), uma vez que com a prorrogação dos pagamentos dos precatórios introduzida pela dita Emenda Constitucional permitirá que o Estado postergue, por longo período de tempo, o cumprimento de decisões judiciais; (iv) princípio da igualdade (art. 5º, “caput”), uma vez que permite o deságio do precatório ao passo que o contribuinte continua obrigado ao pagamento integral de seus tributos; e (v) violação do princípio da liberdade (CF, art. 5º, “caput”) e do princípio da propriedade (CF, art. 5º, XXII), uma vez que impede que o credor do precatório disponha do seu crédito da forma que melhor lhe convier, impondo, ao contrário, o pagamento compulsório de tributos eventualmente devidos.

Em face das inconstitucionalidades acima referidas, e na pendência de qualquer decisão do STF (que, transitada em julgado, seria vinculante para o Poder Público), deve-se ressaltar que o caminho do controle difuso, isto é, do controle de constitucionalidade incidental, em face de um caso concreto, encontra-se aberto, sendo de crer-se que os juízes de primeiro grau poderão ter posição mais favorável (e mais afinada com os princípios republicanos e constitucionais) ao credor de precatórios prejudicado pelos efeitos inconstitucionais da Emenda Constitucional nº 62/2009, inclusive de modo a formar um “caldo de cultura” que influencie – de baixo para cima, diga-se bem – o entendimento da Corte Suprema. Eventual decisão do STF, superveniente ao trânsito em julgado de decisões que afastem a aplicação das normas constitucionais questionadas, deverá – conquanto isto possa não ocorrer – ser modulada para respeitar as situações constituídas e a coisa julgada produzida antes do seu proferimento. Proferida a decisão do STF antes do trânsito em julgado de processos que versem sobre a mesma matéria, ainda que em controle incidental, prevalecerá (ainda que tecnicamente desacertada) a decisão da Corte Suprema.

O mesmo legislador constituinte derivado, que editou em 2004 a Emenda Constitucional nº 45, visando modernizar e garantir maior eficiência ao sistema jurisdicional brasileiro, acabou por retroceder com a edição da Emenda Constitucional nº 62/2009, uma vez que será produzido inevitavelmente um grande contencioso decorrente das inconstitucionalidades de tal emenda.

Exemplo disto é a questão dos leilões previstos: o particular, titular de um crédito contra o Poder Público, poderá ter grande necessidade de receber o seu crédito, mas sem poder, contudo, enquadrar-se na categoria de precatórios alimentícios. Sendo os leilões a única possibilidade de receber tais créditos no curto prazo, o particular se verá compelido a ter aviltado o valor do seu crédito (lembre-se que a emenda não estabelece um piso para o deságio). Isso configura, sem sombra de dúvida, conduta de verdadeira coerção moral do Estado contra o particular, absolutamente contrária à boa-fé e à moralidade administrativas.

O privilégio de tais condutas não é só do Constituinte derivado: em alguns municípios, editaram-se leis ou atos administrativos (as famosas “portarias”) que determinaram a “renegociação” geral de contratos administrativos titularizados pela Administração Pública. Nesses casos, produziram-se, como era de se prever, uma série de ilegalidades. Isto porque ou o particular aceitava dar o desconto que a Administração propunha ou então teria o contrato rescindido e o seu crédito não pago, ou ambos (caindo, acaso quisesse discutir o débito, por uma ironia malévola, na fila de precatórios). Alguns particulares que aceitaram, sob coerção moral, um desconto aviltante no preço contratual, acabaram tendo revertida a sua situação no Judiciário, que decidiu pela prevalência do preço constante na proposta. Este paralelo entre dois modelos juridicamente viciados justifica-se porque ilustra, de forma nítida, a possibilidade de reversão de tais situações similares à do novo regime de precatórios, mediante a sua discussão judicial.

Outro ponto que certamente criará um contencioso específico é o da compensação obrigatória entre os créditos dos precatórios e o débito em face da Fazenda Pública. Em primeiro lugar, a Emenda Constitucional exigiu apenas que houvesse certeza e liquidez para tais débitos e não a sua inscrição em divida ativa (que seria o procedimento desejável para atestar a liquidez e certeza pretendida). Isto causará uma série de discussões quanto à certeza dos débitos compensados (se no caso dos débitos inscritos em dívida ativa isto já acontece, imagine-se em situação mais precária ainda), e será inevitável uma avalanche de ações de repetição de indébito (ainda que “virtuais”) ou de ações anulatórias de tais compensações impugnando as incorreções de tal procedimento.

De fora parte isto, que sem dúvida já constitui matéria da maior gravidade, importa destacar que o próximo calote do Estado brasileiro com relação ao pagamento de precatórios, se não tem data para acontecer (estimamos, contudo, pelo menos daqui uma década), já tem o veículo normativo escolhido: virá por lei complementar. Isto porque o § 15 do art. 100 da Constituição, tal como alterado pela emenda, prevê que, sem prejuízo das disposições do artigo (isto é, podendo afastá-las quando desejável) “lei complementar a esta Constituição Federal poderá estabelecer regime especial para pagamento de crédito de precatórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação”. Este dispositivo, que estranhamente escapou às ADIs formuladas contra a Emenda Constitucional nº 62/2009, é talvez o ponto mais perverso das alterações, porquanto estabelece que, por ato infra-constitucional se poderá alterar, restringir ou mesmo derrogar as regras constitucionais sobre a matéria. Se antes as normas constitucionais sobre precatórios eram na maioria de eficácia plena, para usar a classificação de José Afonso da Silva, hoje em dia serão, quando muito, de eficácia contida. Esta alteração – das muitas conseqüências práticas que contém – apenas confirma o que já afirmamos no início do presente artigo, que é o de que inevitavelmente se pretendeu dar uma solução de compromisso, simbólica, à enorme e premente questão dos precatórios, que prejudica diariamente um sem-número de pessoas.

Deixando-se de lado as inconstitucionalidades da Emenda Constitucional nº 62/2009, caso suas disposições sejam cumpridas, no médio prazo se terá uma situação saneada quanto à questão. Mas o fato é que não há absolutamente qualquer razão para crer que isto acontecerá. Pelo contrário.

 

Referências:

1. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, pág. 33 e ss.;
2. Vide ADI nº 004372, de relatoria do Ministro Ayres Britto, ajuizada em 22.01.2010 pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES; e ADI nº 4357, de relatoria do Ministro Ayres Britto, ajuizada em 15.01.2010 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB e outros

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