Autor: Giuseppe Giamundo Neto, sócio do escritório Edgard Leite Advogados Associados.
Imagine que você está no ano de 1.988. Você tem uma empresa que presta serviços ao Governo. Você paga religiosamente todos os impostos e remunera os seus funcionários em dia. Por qualquer motivo, o Governo interrompe o pagamento dos serviços contratados, deixando uma dívida de R$ 200.000,00 em valores de hoje. A sua empresa, com a perda da receita, fica sem capital de giro e não consegue honrar o pagamento da totalidade dos impostos devidos. Você ajuíza uma ação de cobrança objetivando o ressarcimento das faturas inadimplidas pelo Governo. A Fazenda Estadual, por sua vez, após inscrição na dívida ativa, ajuíza ação de execução fiscal contra a sua empresa em função do não-pagamento dos impostos.
Passados dois anos, a sua ação de cobrança ainda está em fase de instrução. De outro lado, a execução fiscal foi embargada, sentenciada e a Fazenda já penhora seus bens. Você tenta compensar o crédito existente na ação de cobrança com a dívida perante o Fisco. Este não aceita a compensação, por falta de amparo legal. Você tem seus bens constritos enquanto a ação de cobrança contra o Estado acaba de ser sentenciada. O ano já é 1992. O Estado recorre da sentença, o TJ confirma a decisão. O Estado recorre novamente, desta vez ao STJ e ao STF. Perde. A ação transita em julgado e é expedido o respectivo precatório em abril de 1996. Já sem seus bens há quatro anos, você analisa a Constituição Federal e verifica que a dívida finalmente será paga pelo Estado no ano seguinte. Passam-se três anos, no entanto, e nada foi depositado em juízo. Nesse ínterim, é promulgada a EC nº 30/2000 e o Estado parcela o pagamento do valor que deveria ter sido honrado em 1988 em dez anos. Você continua a esperar.
O ano já é 2009, foram pagas apenas duas parcelas (de dez) ¾ e com atraso. Você lê o noticiário e é surpreendido com a informação de que após a aprovação em um único dia na CCJ e no Plenário do Senado Federal, tramita em ritmo acelerado na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional nº 12/2006 (“PEC 12”), que institui novo regime para o pagamento dos precatórios, concedendo mais quinze anos (!!!) de prazo para o pagamento do seu crédito. E pior, não há exceções: mesmo a dívida já parcelada com o benefício da EC 30 está inserida no novo regime. O Estado, relembre-se, está com seus bens desde 1992 em função dos impostos que você deixou de honrar. Pela projeção, você receberá em 2024 pelo serviço que prestou em 1988. Isto, claro, se não for promulgada uma nova emenda prorrogando o pagamento por mais 30 anos.
A história acima, com pequenas variações de datas e de valores, é a vivenciada por milhares de credores do Poder Público neste momento com a possibilidade do advento da PEC 12, que na prática institui um verdadeiro calote continuado. A pressão para que isto aconteça é enorme por parte dos Estados e das Prefeituras. A justificativa: o problema dos precatórios vencidos e não pagos, principal objeto da PEC, os obriga a conviver diariamente com o risco de sequestro judicial de receitas, relativo a dívidas contraídas em outras gestões, o que já criou situações graves em diversos municípios.
Nesse sentido, de acordo com o texto da PEC 12, enquanto a entidade política devedora estiver sob o regime especial de pagamento de precatórios não terão aplicação o instituto da intervenção, o sequestro de verbas públicas, bem como os termos da EC nº 30/2000. Em suma, o novo regime de pagamento prevê que o ente devedor deverá depositar anualmente, em uma conta especial, um valor percentual calculado sobre as respectivas receitas correntes líquidas. Esse percentual será fixado com base no volume da dívida em precatórios da entidade federativa devedora (variando de 0,6 a 2,0 %), sendo os recursos assim destinados: 60% ao pagamento de precatórios por meio de leilão eletrônico ¾ mecanismo opcional, pelo qual o credor poderá negociar o precatório com deságio ¾ e 40% para pagamento à vista, em fila crescente de valor.
Salta aos olhos a diversidade de princípios jurídicos violados pelo texto atual da PEC 12, destacando-se, dentre eles, os princípio da isonomia, da coisa julgada, da segurança jurídica, do ato jurídico perfeito, e, principalmente, o princípio da separação dos poderes, na medida em que consagra o descumprimento, pelo Executivo, de ordens de pagamento emanadas pelo Poder Judiciário, condicionando o seu cumprimento, ademais, à submissão do particular ao imoral processo de leilão instituído, pelo qual recebe aquele que mais desvalorizar o seu título judicial.
Cabe, agora, à Câmara dos Deputados analisar a proposta. Espera-se, ao menos, que as arbitrariedades e inconstitucionalidades constantes do texto aprovado pelo Senado sejam melhor avaliadas e haja a devida discussão acerca de tema de tamanha relevância.
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