A inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel

Autora: Silvia Regina Corrêa de Castro, integrante do escritório Edgard Leite Advogados Associados.

 

Por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal arquivou, em 03 de dezembro de 2008, o Recurso Extraordinário n° 349.703 e, por unanimidade, negou provimento ao Recurso Extraordinário n° 466.343. Ambos os Recursos discutiam a prisão civil de alienante fiduciário infiel. O Plenário estendeu a proibição de prisão civil por dívida, prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal, à hipótese de infidelidade no depósito de bens e, por analogia, também à alienação fiduciária, tratada nos dois Recursos. Para dar efetividade à decisão, o Plenário revogou a Súmula n°619, a qual previa:

”A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constitui o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito".

No julgamento, a maioria dos Ministros aderiu à corrente capitaneada pelo presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, que defende a supralegalidade dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, vencida a corrente liderada pelo Ministro Celso de Mello, que confere a eles status equivalente ao do texto da Constituição Federal.

A primeira corrente — que considera esses tratados acima da legislação ordinária do país, porém abaixo do texto constitucional — admite, entretanto, a hipótese do nível constitucional desses tratados, quando ratificados pelo Congresso pelo mesmo rito obedecido pelo Congresso Nacional na votação de Emendas Constitucionais: votação em dois turnos nas duas Casas do Congresso, com maioria de dois terços, conforme previsto na EC nº 45, de 2004, que acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição Federal.

Atribui-se, assim, aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, superioridade jurídica em face da generalidade das leis internas brasileiras.

O Ministro Marco Aurélio, precursor dessa tendência, já vinha, há tempos, negando a prisão de depositário infiel. Em março de 2008, esta corrente ganhou um aliado importante: o Ministro Celso de Mello, que até então se alinhava entre os defensores da segunda parte do dispositivo constitucional. Dessa forma, o Ministro mudou de entendimento e passou a defender claramente a não-prisão do depositário infiel.

Na sessão plenária realizada em dezembro, prevaleceu o entendimento de que o direito à liberdade é um dos direitos humanos fundamentais priorizados pela Constituição Federal e que sua privação somente pode ocorrer em casos excepcionalíssimos, como ocorre no inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.

O Ministro Gilmar Mendes, ao proferir seu voto afirmou, ”parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de ‘supralegalidade’ aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de ‘supralegalidade’. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.”

O Ministro Celso de Mello, acompanhando o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, afirmou: ”a questão básica suscitada na presente causa consiste em saber se ainda subsiste, no direito positivo brasileiro, no plano infraconstitucional da legislação interna, a prisão civil do depositário infiel, considerado o que dispõem a Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de São José da Costa Rica (Art. 7º, § 7º) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 11). A alta relevância dessa matéria, que envolve discussão em torno do alcance e precedência dos direitos fundamentais da pessoa humana, impõe que se examine, de um lado, o processo de crescente internacionalização dos direitos humanos e, de outro, que se analisem as relações entre o direito nacional (direito positivo interno do Brasil) e o direito internacional dos direitos humanos, notadamente em face do preceito inscrito no § 3º do art. 5º da Constituição da República, introduzido pela EC nº 45, de 2004.”

Assim, a jurisprudência da Corte evoluiu, entendendo que por carecer de lei que defina rito processual e prazos, a segunda parte do dispositivo constitucional que versa sobre o tema, é de aplicação facultativa quanto ao devedor, excetuando, entretanto, a prisão civil advinda ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *