Autor: Amauri Feres Saad, advogado integrante de Edgard Leite Advogados Associados.
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União – TCU dos últimos anos sinaliza uma tendência que tem causado preocupação às empresas contratadas pela Administração Pública, notadamente àquelas que são partes em contratos atinentes a obras públicas: ao menor indício de sobrepreço em tais contratos, aferido normalmente em auditorias preliminares, o TCU tem determinado, antes mesmo do fim do processo administrativo de tomada de contas e de regra sem a oitiva das partes interessadas, a retenção, pelo órgão contratante, nos pagamentos a serem realizados à empreiteira, de valor equivalente ou proporcional ao suposto “superfaturamento” (que é a nomenclatura utilizada pelo órgão quando os preços praticados estão em desconformidade com aqueles que, segundo os critérios utilizados pelo próprio órgão, são considerados como “de mercado”).
O TCU é órgão de natureza administrativa, auxiliar do Poder Legislativo, ao qual cabe, de acordo com o art. 71 da Constituição, fiscalizar e julgar as contas do Chefe do Executivo e de outros órgãos da Administração Pública, além do poder de sustar atos (exemplificativamente: ato de concessão de aposentadoria ou ato praticado no curso de processo licitatório) que julgue ilegais, desde que, tendo assinalado prazo para tanto, não seja atendido pela autoridade competente (incs. IX e X). No caso de contratos administrativos, o texto constitucional é expresso: constatada ilegalidade, o TCU deve comunicá-la ao Congresso Nacional: na ausência de resposta deste, no prazo de noventa dias, o órgão “decidirá a respeito” (§§ 1º e 2º).
Diante deste quadro normativo é inegável concluir que a competência do TCU para decidir sobre contratos administrativos somente surge quando são transcorridos noventa dias sem qualquer pronunciamento do Congresso Nacional. Se este se pronunciar a favor ou mesmo contra a ilegalidade apontada, não pode o TCU adotar conduta diversa com relação ao assunto. A Constituição reclama o pronunciamento em primeiro lugar do Congresso Nacional por considerar que os contratos administrativos, que envolvem, de um lado, a mobilização patrimonial de particulares para a consecução de objetivos de interesse público, e, de outro, o comprometimento do Estado na qualidade de pessoa jurídica ao menos formalmente equiparada aos primeiros, constituem matéria de alta relevância, que não pode afetada a priori por decisões que não as dos representantes do povo.
Inobstante, o TCU, conforme dito acima, não tem seguido o procedimento determinado pela Constituição. E a “base” jurídica evocada para tanto é o art. 276 de seu Regimento Interno (que dispõe que “O Plenário, o relator, ou, na hipótese do art. 28, inciso XVI, o Presidente, em caso de urgência, de fundado receio de grave lesão ao erário ou a direito alheio ou de risco de ineficácia da decisão de mérito, poderá, de ofício ou mediante provocação, adotar medida cautelar, com ou sem a prévia oitiva da parte, determinando, entre outras providências, a suspensão do ato ou do procedimento impugnado, até que o Tribunal decida sobre o mérito da questão suscitada, nos termos do art. 45 da Lei nº 8.443, de 1992”).
Além da violação ao art. 71, §§ 1º e 2º, outro dispositivo de ordem constitucional pode ser afetado por decisões de retenção de preço em contratos administrativos tomadas pelo TCU. Afinal, ao pretender-se obrigar o particular contratado a executar o contrato por parte do preço constante de sua proposta, viola-se o princípio da proteção à equação econômico-financeira dos contratos administrativos, inscrito no art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal, que determina que os contratos deverão ser executados pelo preço constante da proposta.
A sistemática pretendida pelo TCU para prevenir danos ao erário confronta-se, adicionalmente, com as disposições constitucionais para a cobrança de valores eventualmente devidos ao Poder Público: constatado o dano, em processo administrativo regular em que seja garantido ao particular o direito à ampla defesa e ao contraditório, imputa-se àquele débito ou multa, possuindo as decisões do órgão o “status” de título executivo, que lhe permitem a inscrição em dívida ativa e a execução judicial (art. 71, §3º, da Constituição). A “execução” antecipada, mediante retenção de parcela do preço contratual, não se coaduna com tal sistemática.
A teoria dos poderes implícitos, utilizada pelos defensores da possibilidade de o TCU aplicar retenções de preço em contratos administrativos em sede de medida cautelar, com base em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF (MS nº 23.550-1/2001) sobre a possibilidade de o TCU adotar medidas cautelares de sustação de ato administrativo (e não de contrato administrativo), obviamente que só se aplica – nas hipóteses restritíssimas em que se aplica – quando não haja regra expressa sobre um caso (o que não é o que ocorre na matéria de contratos administrativos, como visto).
A par de tais considerações, que contam com o apoio da mais autorizada doutrina, a jurisprudência ainda é oscilante, sendo, no entanto, possível considerar já uma tendência no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade de tais intervenções das Cortes de Contas. De todo modo, o assunto somente deve se pacificar nos tribunais quando a matéria for submetida ao STF.
Do ponto de vista dos contratados afetados por tais decisões, é importante a submissão de tais questões ao Poder Judiciário, para que se abra a possibilidade da afirmação dos direitos em causa. Do ponto de vista das Cortes de Contas, importante notar a necessidade de observância dos procedimentos e competências estabelecidos pela Constituição e que constituem o chamado “devido processo legal”, corolário do Estado de Direito, como condição de legitimidade de suas ações na importante tarefa que lhes cabe de controle das contas estatais.
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