Autor: Diogo L. Machado de Melo, advogado integrante do escritório Edgard Leite Advogados Associados.
Tem-se, pois, que o artigo 187 do Código Civil de 2002, responsável pela positivação da cláusula geral de responsabilidade pelo abuso de direito em nosso sistema, é tanto mais importante no campo do direito público em virtude dos princípios que delimitam o comportamento da Administração Pública, em específico, o da moralidade e legalidade (art. 37, caput, da CF). Não é demais lembrar que, indiretamente, o abuso de direito tem sido importante instrumento para coibir a infinidade de recursos protelatórios da Fazenda.
Como já sustentamos em outra oportunidade (Cláusulas contratuais gerais, Saraiva, 2008, p. 156) a sanção do ato abusivo é variável e deve ser determinada caso a caso. Pode gerar a reparação natural, indenização pecuniária, uma infinda gama de hipóteses, como nulidade, anulabilidade, inoponibilidade, rescindibilidade do ato ou negócio. A determinação da sanção, que em última análise se aplicará ao ato abusivo, só deverá ser feita em função e de acordo com as circunstâncias específicas da modalidade de contratação (público ou privada) e em razão do comportamento concretamente assumido pelo titular do direito.
Tratando especificadamente das práticas contratuais comumente adotada pelo Poder Público, normalmente precedidas de cláusulas predispostas pela Administração, podemos destacar dois exemplos claros de abuso de direito, a admitir o controle judicial de tal prática: (i) comportamento contraditório (venire contra factum proprium) face a negativa de pagamento de faturas em aberto após ter atestado a prestação do serviço, feito pagamentos parciais e feito promessa de quitação total do débito dos contratos e também (ii) casos de falta de qualquer solução dos processos administrativos instaurados para pagamento, normalmente diligentemente conduzidos pelo particular.
Vale ressaltar que o fundamento desse princípio da proibição do comportamento contraditório é ”a confiança na coerência daquele que pratica o factum proprium” (Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Renovar, 2005, pp. 147/148.) Dentre as conseqüências do princípio que veda o comportamento contraditório estão a de impedir a prevalência da conduta contraditória e a de impor o dever de reparar os danos provocados.
A doutrina faz referência a algumas situações indicativas da prática de abuso pela confiança despertada que se encaixam perfeitamente ao caso concreto: gastos e despesas provocadas pelo fato, publicidade da expectativa, medidas adotadas ou de abstenção provocadas pelo fato próprio, ausência de qualquer sugestão de mudança futura do comportamento.
Há a abuso de direito qualificado pelo comportamento contraditório (venire contra factum proprium) quando o Poder Público firma posição inequívoca de aceitação do pagamento e, posteriormente, sem qualquer justificativa, mesmo após ter realizado pagamentos parciais e atestado a prestação do serviço, seguindo cegamente a política adotada por uma dada Administração, negar pagamento sob a justificativa, por exemplo, da prescrição. Tal comportamento contraditório é agravado quando o Poder Público cobra, em ato subseqüente, multas contratuais atestando, portanto, que os contratos estão válidos e eficazes.
O comportamento abusivo do Poder Público não se materializa, apenas, no comportamento contraditório tomado pela Administração, mas também na falta de qualquer solução aos procedimentos administrativos que, mesmo diligentemente conduzidos pelos particulares e, surpreendentemente, após longos anos de tramitação indicando a realização da contraprestação contratual, nega-se o direito de crédito por razão estranha as partes, invocando também, na maioria dos casos, a prescrição.
Resgata-se, por isso, a outra figura do abuso de direito (por violação da boa-fé), conhecida na doutrina pela suppressio, que se materializa quando uma posição jurídica, não tendo sido exercida durante certo tempo, não pode mais sê-lo por, de outra forma, atentar contra a boa-fé, ocorrendo, assim, uma supressão de certas faculdades jurídicas, pela conjugação do tempo com a boa-fé.
Ensina Renan Lotufo (Código civil comentado: parte geral, p. 504) a suppressio é a situação de inércia no exercício de direito, por um lapso de tempo, que não permite mais o exercício, por contrariar a boa-fé. A supressio deve ser entendida no sentido restrito de inadmissibilidade do fazer valer pretensão cujo exercício tenha sido deslealmente retardado.
Portanto, no exemplo, não acolhida a tese da força interruptiva da prescrição com a pendência dos processos administrativos sem solução, a suppressio é aplicável justamente na inatividade de uma posição jurídica do Poder Público, tutelando-se a confiança e a boa-fé do particular, fazendo com que essa posição jurídica não possa mais ser exercida pelo Poder Público. Sua configuração se baseia no transcurso de tempo, na inatividade do titular e na formação da confiança do obrigado, motivada por dita inatividade.
A teoria do abuso de direito passa a ser, portanto, importante arcabouço de tutela dos contratados pela Administração, impedindo que a aludida supremacia do interesse público, reiteradas vezes invocada pelos julgados, seja confundida (e por isso enfraquecida) como mecanismo de política e de manipulação de uma passageira gestão de governo.
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