A aplicação da teoria do abuso de direito nas contratações com o Poder Público (Parte 1)

Autor: Diogo L. Machado de Melo, advogado integrante do escritório Edgard Leite Advogados Associados.

 

No âmbito contratual, não é incomum que o Poder Público, na tentativa de postergar ou até mesmo se eximir do cumprimento de seus deveres, adote postura passiva, sem responder aos pleitos do particular contratado e pior: no mais das vezes, abruptamente, contrariando a letargia de longos anos de relação contratual, valendo-se de uma má leitura de suas prerrogativas ou da sua (suposta) supremacia, surpreende o contratado negando-lhes direitos, argüindo, por exemplo, como causa dessa negativa, a prescrição da pretensão deduzida.

Nesse exemplo, sob a exclusiva (e fria) ótica do decurso do tempo, alguns Tribunais do país tem dado guarida à postura adotada pelo Poder Público, reconhecendo, em muitos casos, a prescrição qüinqüenal nos moldes do Decreto 20.910/32, não acolhendo a força interruptiva de processos administrativos de pagamento, ainda que a pretensão esteja fora das mãos do particular, que aguarda resposta ou o cumprimento da eventual política de parcelamentos dos atrasados adotado pela atual gestão. Nesse cenário, nem mesmo o conteúdo expresso do art. 4º, que prescreve ”não correr a prescrição” durante a ”demora que, no estudo, no reconhecimento ou no pagamento da dívida, tiverem as repartições” tem sensibilizado os julgadores do contrário.

Portarias e Decretos são emitidos. Ofícios são exarados pelos Agentes Públicos, com as exigências mais estapafúrdias, diligentemente cumpridas pelo particular. Em alguns casos, os débitos contratuais chegam até a serem incluídos no Orçamento gerando, inequivocamente, a legítima expectativa da quitação total da obrigação contratual pendente. Mesmo diante desse quadro, comum a invocação do ”fato novo” pelo Poder Público, argüindo a malfadada ”prescrição qüinqüenal”, temida pelos contratados da Administração.

Ora, nesse exemplo, acolher-se a exceção da prescrição sem a devida atenção ao histórico do comportamento adotado pelo Poder Público no dado contexto da relação contratual, fulminando a pretensão do particular contratado pelo simples fato deste não ter se socorrido às vias judiciais à época — punindo-o, assim, por ter aceitado a confiança despertada na quitação dos débitos em aberto — é, no mínimo, prestigiar comportamento abusivo, inadmissível no sistema jurídico, ainda que o contratante seja dotado de prerrogativas e esteja sob o escudo da supremacia do interesse público.

O exercício de direitos não é algo ilimitado, um comportamento sem freios. É ínsito ao pensamento de um sujeito titular de direitos que pode exercê-los da maneira como melhor entender, de acordo com as suas necessidades e ideais, cuja licitude é presumida.
Todavia, a existência de um estado democrático de direito acarreta a imposição de limitações, de tal sorte que as pessoas — públicas ou privadas — devem exercitar os seus direitos consoante circunscrito pelo ordenamento jurídico, não podendo deles abusar.

A teoria do abuso do direito não cuida especificamente da violação de um direito de outrem ou da ofensa a uma norma tuteladora de um interesse alheio, mas do exercício anormal de direito próprio.

Não é um instituto exclusivo do direito privado. Pelo contrário. Vale lembrar que a primeira tentativa histórica da introdução do abuso de direito no sistema positivo brasileiro ocorreu no Anteprojeto de reforma da Lei de Introdução ao Código Civil, apresentado sob a denominação de ”Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas”, do prof. Haroldo Valladão, como artigo 11, sob a rubrica ”Condenação do Abuso de Direito”. Afinal, para o ilustre professor, ”esse princípio supremo de justiça social, que é a condenação do abuso de direito, evidentemente não pode ficar apenas num dos vários Códigos ou das várias Leis, existentes no país. É fundamental, básica, deveria estar na própria Constituição. No plano da legislação ordinária o seu lugar é no princípio de todas as leis, na lei Preliminar, na Lei Introdutória, na Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas”.

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