O Brasil precisa pôr a mão nas feridas

Diz o narrador em Proust: somos amigos daqueles cujas ideias estão no mesmo nível de confusão que as nossas. É princípio que ajuda a explicar os agrupamentos políticos, unidos por interesses e também por confusões. Às vezes o preço da confusão na política fica alto demais. A clareza na demarcação de rumo nacional vira requisito de salvamento. Vivemos no Brasil um desses momentos.
O desenvolvimento brasileiro repousa, desde a redemocratização, em duas bases: consumo e commodities. A agropecuária e a mineração pagaram a conta do consumo. O aumento da renda popular permitiu que muitos pudessem usufruir bens de consumo em massa. Milhões de brasileiros saíram da miséria.
As circunstâncias no mundo mudaram. Fechou-se o caminho. É velha história no Brasil: buscar no chão a riqueza que a inteligência não se preparou para produzir. Sempre acaba em lágrimas. Só a inteligência salva, casada ou não com a natureza. Mesmo quando tudo parecia estar bem não estava: a bonança escondia baixa produtividade na economia brasileira. Produtividade baixa não é problema apenas econômico. Consignar a maioria dos brasileiros a empregos pouco produtivos significa condená-los a viver vidas pequenas.
O governo tentou dar sobrevida a este modelo –porque queria ganhar a última eleição, é verdade, mas também porque tentava proteger a maioria pobre dos efeitos da queda econômica. Quando a agropecuária e a mineração já não bastavam para pagar a conta do consumo, fez com que o Estado e as empresas públicas ajudassem a pagá-la. As políticas de estímulo e subsídio também perderam eficácia. A economia, que já estava parando, passou a sofrer com o desarranjo das finanças públicas.
É preciso dar novo rumo ao Brasil. Rumo que refunde o crescimento sobre a base das oportunidades e capacitações. Nova tarefa exige novo método. Pode democratizar-se a demanda com dinheiro. A democratização da oferta –das oportunidades produtivas e das capacitações educacionais– exige inovação institucional: a reorganização do país. Não acontecerá se não for antes imaginada.
AJUSTE FISCAL
Temos de sanear as finanças públicas. Sua desorganização começa por anular o poder estratégico do Estado. Acaba por subverter a produção. O ajuste fiscal, porém, é só preliminar, ainda que indispensável, a uma agenda nacional. Para que cumpra seu papel, precisamos nos livrar de duas ilusões.
De acordo com a primeira ilusão, o ajuste seria para ganhar a confiança dos mercados financeiros, e, com ela, investimento e crescimento. É conto de fadas: nunca funcionou em lugar algum. Precisamos fazer o ajuste pela razão inversa: para que o governo e o país não dependam da confiança financeira e não tenham de traçar seu caminho de acordo com as preferências dos financistas. Assegurar a primazia dos interesses do trabalho e da produção sobre os interesses financeiros é um dos marcos da estratégia de desenvolvimento a construir. Do contrário, corremos o risco de transmitir a seguinte mensagem: ficamos em pânico e nos rendemos aos bancos.
A segunda ilusão vem do keynesianismo vulgar. Foi nele que os partidos e os economistas que se têm na conta de progressistas se refugiaram quando abandonaram o marxismo e perderam a fé nas heterodoxias, mais ambiciosas, do passado.
Aceita-se ajuste, sim, dizem, porém, mais brando: com menos aperto e combinado com estímulos e alívios. Mas não foi isto o que, junto com o barateamento das commodities, ajudou a nos levar ao lugar onde estamos hoje, com as finanças públicas desorganizadas e a iniciativa estratégica do Estado comprometida? E como falar em atenuar o ajuste quando, reduzido a tratar da pequena parte do Orçamento que consiste em gasto discricionário, o ajuste mal pode existir?
Rejeitadas essas ilusões, chega-se ao âmago do problema suscitado pelo imperativo do ajuste fiscal. Menos de 10% do Orçamento federal é gasto discricionário. Mais de 90% é gasto obrigatório, expresso em direitos adquiridos e vinculações de receita. Limitar o ajuste à franja discricionária do gasto significa ou fazer ajuste inconsequente ou fazer corte tão drástico nos 10% livres que paralisa o Estado: o gasto discricionário financia a operação do governo. O ajuste tem de tratar do gasto todo e reordená-lo à luz de um projeto de país.
Tratar do gasto todo, porém, não é operação contábil. É repactuação de acertos na sociedade brasileira. Construímos regime de rentismos. Há os rentismos dos endinheirados: os juros da dívida pública e o crédito subsidiado dos bancos públicos. Há, em escala incomparavelmente menor, as proteções dos pobres –os programas de transferência– estas, sim, justificadas porque asseguradoras de mínimos indispensáveis à autoconstrução do indivíduo e à sua cidadania. E, para cada corporação, no meio entre ricos e pobres, suas prebendas e seus resguardos.
A lei e a Constituição fizeram de muitas destas prerrogativas direitos adquiridos. As vinculações de receita serviram como créditos preferenciais concorrendo ao espólio de uma massa pré-falida: o dinheiro do Tesouro. E a Previdência prometeu mais do que um país, com cada vez menos jovens e mais velhos, pode pagar. Enquanto a receita pública crescia ainda mais do que um PIB em ascensão, deu para manter o esquema. Com o crescimento parado e a receita desabando, não dá.
Ajuste que funcione sem paralisar o Estado tem de enfrentar essa realidade. Domar os rentismos. E rever direitos adquiridos. Se for, porém, para jogar a maioria na insegurança econômica e para aumentar a desigualdade, não merece passar e não passará. O regime dos rentismos e dos direitos adquiridos tem de ceder lugar à democratização organizada das oportunidades e das capacitações. Muito melhor resolver o conflito distributivo por empoderamento do que resolvê-lo por cooptação.
Para desmontar, com segurança social, o sistema estabelecido, precisa haver travessia. Por exemplo, definir metas quantitativas em cada setor das políticas públicas. E desvincular receitas à medida que forem alcançadas.
A tarefa menor do ajuste e a obra maior do produtivismo inclusivo e capacitador são inseparáveis. Cada uma depende da outra.
PRETEXTOS
Não faltam pretextos para desesperar do esforço de redirecionar o país. São todos falsos. Cito três dos mais influentes.
O primeiro pretexto alega a falta de partidos confiáveis. Teríamos de reformar a política e construir os partidos antes de sonhar em reorientar o rumo. Nenhuma nação, porém, reforma a política para só depois decidir o que fazer com a política reformada. E, no Brasil, os partidos fortes foram mais consequência do que causa dos projetos fortes. O regime partidário mais robusto que tivemos foi o que emergiu na democracia de 1946: os partidos se construíram polarizados em torno do projeto de Getúlio Vargas.
O segundo pretexto argumenta que crise e falta de dinheiro impedem as iniciativas exigidas por alternativa nacional. Crise, contudo, é condição de mudança. Onde falta dinheiro, têm de sobrar política e imaginação. Alternativa transformadora começa em mudanças de regra e regime, em inovações institucionais, que não custam dinheiro. Custam ideias.
O terceiro pretexto é o mais geral e o mais difícil de combater: o espírito do fatalismo histórico. O mundo não comportaria rebeldias casadas com alternativas. O que está em jogo é afirmação nacional fundada na coesão nacional. Não há salvação nacional sem afirmação nacional. Não há afirmação nacional sem rebeldia nacional. Não há rebeldia nacional fecunda sem que a rebeldia se alie à imaginação institucional.
A aliança entre a rebeldia nacional e a imaginação institucional não cabe no discurso açucarado da política brasileira: o discurso do social, dos social-liberais e dos social-democratas. O social tem sido o açúcar com que se pretende dourar a pílula do regime econômico. Açúcar não levantará o Brasil. Abaixo os pretextos para rendição nacional.
EDUCAÇÃO
A melhor maneira de desvendar o rumo da democratização de oportunidades e de capacitações, como base de novo ciclo de desenvolvimento nacional, é pôr a mão em algumas feridas do Brasil. Abordo seis destas feridas. Estão longe de serem as únicas. Começo com a ferida da incapacidade na educação.
O Brasil avançou no acesso à escola. A qualidade, entretanto, continua a ser miserável. No final do ensino médio, mais da metade dos alunos vive dificuldades em interpretar texto rudimentar. Convidados a interpretá-lo, oscilam entre a repetição e o devaneio. A nação cujos jovens não conseguem lidar com o pensamento escrito está condenada a buscar na natureza o que não se preparou para criar por meio da inteligência.
A única resposta suficiente é a revolução na maneira de aprender e de ensinar. Revolução que aproveite nossos pendores –criativos e anárquicos– para atender ao chamado da produção e da ciência. Significa acabar com decoreba e enciclopedismo, priorizar o domínio de competências analíticas, preferir aprofundamento seletivo a abrangência superficial e apresentar cada área do conhecimento de pontos de vista contrastantes para imunizar os estudantes contra o conformismo intelectual que os leva a confundir as ideias dominantes com a natureza das coisas. Currículo nacional tem de especificar o que o aluno de cada série tem o direito de aprender.
Para fazer tal revolução, temos de organizar a cooperação federativa na educação: a maneira de o governo federal trabalhar com os Estados e municípios para impor em todo o país padrões nacionais de investimento e de qualidade. A qualidade da educação que um jovem recebe não deve depender do acaso do lugar onde ele nasce.
E nada funcionará sem professor motivado, preparado e equipado. Daí a importância de carreira de professor que permita progressão salarial e intelectual ao longo da vida.
O governo conta com dois instrumentos poderosos para fazer valer seus propósitos: o controle dos exames nacionais (a começar pelo Enem) e o condicionamento do subsídio às instituições privadas que formam a grande maioria dos professores.
PRODUÇÃO
O Brasil possui cultura empreendedora vibrante. A maior parte de nossas empresas, porém, continua afundada em primitivismo produtivo, sem práticas ou tecnologias avançadas. Mesmo nossas maiores empresas, por atuarem no aproveitamento de recursos naturais, estão restritas a repertório estreito de tecnologias e práticas.
A superação desse quadro passa por política industrial que, em vez de apostar em setores específicos, aposte em acesso a crédito, a práticas e máquinas avançadas e a mercados mundiais. E que difunda ensino técnico voltado para o domínio das capacitações polivalentes que as tecnologias contemporâneas requerem. Capital não basta. É só o ponto de partida.
O ponto de chegada é a construção de arranjos que facilitem a difusão do vanguardismo produtivo, em vez de deixá-lo confinado a ilhas de avanço, como geralmente ocorre no mundo. O marco institucional de um vanguardismo inclusivo abrange coordenação estratégica entre governos e empresas que seja descentralizada, pluralista, participativa e experimental. E que se alimente da concorrência cooperativa entre pequenas e médias empresas de vanguarda: ganham economias de escala, ao fazer mutirão de recursos, enquanto continuam a competir entre si.
Não se trata de regular o mercado; trata-se de reorganizá-lo em prol do experimentalismo radical na produção.
TRABALHO
A informalidade diminuiu. A precarização na economia formal aumentou. Parte cada vez maior da força de trabalho está em situação de terceirizado ou temporário, ou autoemprego, sem a proteção efetiva das leis. É tendência mundial, resultante de mudança arraigada das práticas de produção. Não a aboliremos por decreto. Isso não significa, porém, que tenhamos de abandonar a maior parte da força de trabalho à precarização e tolerar a divisão do mercado de trabalho entre trabalhadores estáveis e precarizados. Se juntarmos os 40% que continuam na informalidade aos precarizados da economia formal, temos a maioria da população economicamente ativa.
Vivemos situação contraditória. A minoria organizada, representada por sindicatos e protegida por lei, goza de direitos litigados a rodo e definidos com rigidez que inferniza a vida de todos. Rigidez que ajuda a explicar uma das mais altas taxas de rotatividade do trabalho do mundo. A maioria, informal ou precarizada, trabalha no abandono, sem direitos. É incompatível com escalada de produtividade e compromisso de inclusão.
A solução tem três partes. Derrubar os obstáculos tributários e burocráticos à formalização dos informais. Criar direito para proteger, organizar e representar os precarizados. E permitir aos relativamente estáveis negociar com os empregadores. Acabemos com o apartheid entre a minoria organizada e a maioria desprotegida.
AMBIENTE
Um de nossos maiores recursos nacionais é a natureza estupenda que nos cerca. Mas a confusão ambiental virou pesadelo para os produtores, grandes e pequenos, em qualquer lugar do Brasil. Ao contrário do que se supõe, o problema não é que as regras ambientais sejam severas demais. É que não há regras ambientais: normas, por exemplo, que deem tratamento diferente a áreas ocupadas e áreas virgens.
Nosso direito ambiental é um pseudodireito, quase inteiramente processual. Delega poderes discricionários a pequenos déspotas administrativos. Estes viram joguetes nos embates entre os interessados. A solução é clara: definir regras.
GESTÃO E CONTROLE
No Brasil, o gestor público mal consegue trabalhar. A pretexto de perseguir o gestor desonesto, construímos sistema de controle que cerceia e intimida o gestor sério. Por que arriscar, por que experimentar, com o Tribunal de Contas e o Ministério Público no encalce?
A população, indignada com a corrupção, grave, porém localizada, deixa de reconhecer o problema maior: não havermos conseguido organizar o controle das ações de governo como maneira de qualificar a gestão pública. Qualificá-la em vez de anulá-la.
FEDERALISMO
A razão para ser Federação é poder inovar e divergir mais facilmente. Governadores e prefeitos não são empregados de presidente. Autonomia dos Estados e municípios não é o oposto de oportunidade para ação decisiva por parte do governo central.
Só podemos construir nosso caminho experimentando. Para isto, precisamos dar vida à Federação. E, como todos os avanços, em todos os setores das políticas públicas, dependem de cooperação federativa –vertical, entre os três níveis da Federação, horizontal, entre os Estados e entre os municípios–, precisamos permitir que a cooperação aconteça.
O primeiro requisito para dar eficácia a esse objetivo é assegurar partilha tributária que não obrigue governadores e prefeitos a ir de pires na mão ao Palácio do Planalto e ao Ministério da Fazenda.
O segundo requisito é definir outro paradigma de política regional. Estratégia nacional só toca o chão da realidade no Brasil quando traduzida em iniciativas para as grandes e pequenas regiões do país.
Política regional deve ser para todas as regiões. Deve ter por vocação identificar vanguardas emergentes em cada região e provê-las de instrumentos para desenvolver novas vantagens comparativas. E deve ser construída de baixo para cima, por iniciativa de cada região, mais do que de cima para baixo, pelo governo federal.
BASE
Já existem duas bases –uma social, outra regional– para apoiar a alternativa de que o Brasil precisa.
A primeira são os emergentes: a pequena burguesia empreendedora e a multidão, maior, de trabalhadores ainda pobres, porém convertidos à cultura de autoajuda e de iniciativa. Os emergentes já estão no comando do imaginário popular. É a vanguarda que a maioria quer seguir. Criar as condições para que possa segui-la é uma das tarefas da alternativa nacional.
A segunda base é o Brasil profundo, das regiões. Move-se; não aguarda Brasília. Quer equipamento, não açúcar. É constatação, não opinião. Vi com meus olhos nos sete meses em que trabalhei no governo e andei o país.
O que falta é prover estas bases de instrumento político e de projeto de poder.
CONSCIÊNCIAS
Transformação profunda toca em instituições e em consciências.
A fórmula tradicional da vida brasileira era a mistura, nas mesmas relações sociais, de troca, prepotência e sentimento: a sentimentalização das trocas desiguais. Há muito tempo contesta-se esta fórmula no Brasil em nome de ideias associadas com as sociedades e as culturas dos países ricos do Atlântico norte: respeito, responsabilidade e autonomia; confinamento das aspirações mais calorosas ao espaço privado –a privatização do sublime; distanciamento entre os projetos individuais (sejam de enriquecimento ou de salvação) e os coletivos; separação entre o econômico, o político e o sentimental.
Essas ideias representam o liberalismo e o protestantismo no plano moral. Os movimentos neopentecostais, que prevalecem entre os emergentes, querem encontrar essa orientação no cristianismo. Despidas de fé, as classes endinheiradas e cosmopolitas preferem vê-la como o jeito inevitável de ser numa sociedade que dá certo.
O Brasil, porém, não precisa escolher entre a sentimentalização das trocas desiguais, que pautava nosso antigo regime de senhores e de servos, e esse individualismo liberal e protestante, abraçado pelas elites agnósticas como a religião inevitável dos maduros, frios e desencantados.
O começo de outra inspiração está em ser fiel ao sonho que anima, apesar de tudo, o coração brasileiro: ver a pujança casada com a ternura. Encontrar maneira de nos engrandecermos juntos e de assegurar a cada brasileiro chance melhor de viver vida maior. É o que deve, em última instância, motivar nossa mudança de rumo.
A reconstrução do Brasil há de ter por guia e alvo a realização deste sonho brasileiro. Aproveitemos as agruras do momento para chegar mais perto da grandeza.
 

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