Fonte: O Estado de São Paulo – 29.07.2013
SÃO PAULO – O marceneiro Antônio Luiz Góis Passos, de 46 anos, guarda até hoje a cópia de uma reportagem do Estado da qual foi protagonista há dois anos. Provavelmente vai guardar esta também, mas, agora, ele aparece aqui meio que a contragosto. Em 2011, ele encontrou 15 quadros no lixo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), onde trabalha há 17 anos. Agora, a instituição quer as obras de volta. Mas, para devolvê-las, Passos exige recompensa.
Na época, o funcionário da USP perguntou se as obras eram realmente lixo. Guardou os quadros na universidade por uns meses. Perguntou de novo se eram lixo mesmo. Enfim, decidiu levar o material para a sala de casa em Carapicuíba, na Grande São Paulo.
Passos ficou com a parede enfeitada, até que no mês passado a USP abriu sindicância e pediu todos os quadros. As obras não têm grande valor financeiro e a maioria é reprodução, mas tem Ensaio de Ballet, de Edgar Degas (1834-1917), uma ilustração do cartunista paulistano Belmonte (1896-1947), além de obras dos franceses Maurice Utrillo e Maurice de Vlaminck.
Quando Passos resgatou os quadros do lixo, alguns em mau estado de conservação, ele nem achou que aquilo valesse dinheiro. Depois passou a achar, quis vender na feira de Embu das Artes, e desistiu. Gosta mesmo é de mostrar os quadros na parede, se gabando de ter a cópia 83 de cem de qualquer coisa, porque "significa que são apenas cem no mundo".
Dos 15, só um dos quadros, o de Maurice Utrillo, foi analisado por uma especialista. A professora do Departamento de Química da USP Dalva Lúcia de Faria constatou, por meio de uma técnica que investiga a pigmentação, que o quadro é a reprodução da aquarela original, feito em Paris nos anos 1950.
"Mesmo sendo reprodução, as obras têm algum valor", diz Dalva. "O problema é que os quadros são da época em que o curso de Farmácia era com o de Odontologia. Quando separaram, e com a reforma da biblioteca, muita coisa se perdeu e foi para o lixo mesmo."
Cobrança. Dalva não entende por que a USP agora, dois anos depois, faz questão de ter os quadros de volta. "Quando o seu Antônio pegou do lixo, foi porque achou bonito. Ele é supersimples e teve o senso estético despertado de uma maneira que ninguém ali teve."
A USP informou que "aguarda a devolução dos quadros" e não comentou se vai ou não acionar o funcionário judicialmente. Enquanto isso, Passos se sente mal com a situação. "Não acho muito justo, não. O pessoal joga as coisas fora e depois que repercute na imprensa…" Mesmo apegado às obras, ele topa devolver, mas não de graça. "Quero pelo menos uma gratificação por ter salvado uma coisa importante do lixo."
Material pertence à instituição, dizem juristas
Além de mostrar o descaso com o patrimônio público, os quadros sob a posse de Antônio Luiz Góis Passos levantam uma polêmica. As obras pertencem à USP ou ao marceneiro que as guarda em casa?
Para a advogada Laila Abud, sócia do escritório Edgard Leite Advogados e especialista em Direito Civil, a questão é mais complexa porque os quadros são patrimônio da USP, uma instituição pública. “Os quadros em questão não pertenciam, diretamente, àquele que os jogou no lixo, que, vale ressaltar, não poderia dispor de tais objetos como se tratassem de um patrimônio particular”, diz
Para o diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), Diogo Machado de Melo, o fato de os quadros terem ido ou não para o lixo é “matéria de processo judicial”.
“Mas aquele ditado brasileiro ‘achado não é roubado’ não é como a legislação encara o assunto. Quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor. Os quadros são, sim, da USP. Se o dono reclamou, tem de devolver”, afirma Melo.
O advogado, porém, diz que Passos merece indenização. “Pelos custos de reparo, pelo que gastou para manter as obras e até como punição à própria USP por negligência”, diz. Um valor apropriado, previsto pelo Código Civil, segundo Melo, seria 5% do valor das obras.
Caso o assunto vá parar na Justiça, Laila acredita que algum juiz pode, sim, dar a posse dos quadros ao marceneiro. “O juiz poderá,eventualmente,entender também que a posse dos quadros passou a ser do funcionário, na medida em que ele os encontrou no lixo.”
Apesar de a USP nunca ter desmentido que as obras estavam no lixo, Melo afirma que foi um erro Passos não ter, à época, notificado formalmente a instituição do acontecido.
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