Autor: Professor Cassio Scarpinella Bueno, consultor jurídico do escritório Edgard Leite Advogados Associados e Professor-Doutor de Direito Processual Civil da PUC SP.
1. Introdução
Muito se tem falado sobre a necessidade de a Constituição Federal ser alterada para combater o enorme fluxo de processos nos Tribunais Superiores, em especial no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça.
É esse o objetivo precípuo da Proposta de Emenda à Constituição n. 15/2011, de iniciativa do Senador Ricardo Ferraço do PMDB/ES, que está em trâmite no Senado Federal, sob a relatoria do Senador Aloysio Nunes Ferreira do PSDB/SP.
Além da referida Proposta de Emenda à Constituição, bastante atenção tem se dado a outra proposta, ainda não encaminhada ao Senado Federal, de iniciativa do Ministro Cezar Peluso, atual Presidente do Supremo Tribunal Federal.
Antes da chamada “PEC dos recursos” e da proposta do Ministro Peluso entrarem em cena, vinha sendo bastante discutido o Anteprojeto de novo Código de Processo Civil. O intuito principal de um novo Código de Processo Civil é também o de acelerar a prestação jurisdicional, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Apresentado por Comissão de Juristas nomeada pelo Presidente do Senado Federal e presidida pelo Ministro Luiz Fux, hoje integrante do Supremo Tribunal Federal o Anteprojeto foi revisado e modificado no âmbito do Senado Federal, onde tramitou sob o n. PLS 166/2010. No final de 2010, o Projeto foi aprovado e enviado de imediato à Câmara dos Deputados, onde tramita sob o número PL 8.046/2010.
O intuito do presente trabalho é traçar um breve e não exaustivo paralelo entre a “PEC dos recursos”, a proposta do Ministro Peluso e o Projeto de novo Código de Processo Civil visando, com a iniciativa, dar início a um debate que não pode mais ser retardado.
2. A PEC 15/2011
A Proposta de Emenda à Constituição n. 15/2011, de autoria do Senador Ricardo Ferraço (PMDB/ES), pretende a revogação dos incisos III dos arts. 102 e 105 da Constituição Federal, substituindo as previsões neles contidas atualmente, de cabimento de recursos extraordinário e especial, para o que é chamado de “ação rescisória extraordinária” e “ação rescisória especial”, respectivamente.
É o seguinte o seu inteiro teor:
“Art. 1º. O art. 102 da Constituição passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 102……………………………………………………………………….
I – ………………………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………..
s) a ação rescisória extraordinária;
……………………………………………………………………………………
§ 3º. A ação rescisória extraordinária será ajuizada contra decisões que, em única ou última instância, tenham transitado em julgado, sempre que:
I – contrariarem dispositivo desta Constituição;
II – declararem a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
III – julgarem válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição;
IV – julgarem válida lei local contestada em face de lei federal.
§ 4º. Na ação rescisória extraordinária, o autor deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais nela discutidas, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine sua admissibilidade, somente podendo recusá-la, por ausência de repercussão geral, pelo voto de dois terços de seus membros.” (NR)
Art. 2º. O art. 105 da Constituição passa a vigorar com as seguintes alterações, renumerando-se o parágrafo único como § 1º:
“Art. 105………………………………………………………………………….
I – …………………………………………………………………………………
……………………………………………………………………………………..
j) a ação rescisória especial;
……………………………………………………………………………………..
§ 1º ……………………………………………………………………………….
§ 2º. A ação rescisória especial será ajuizada contra decisões dos Tribunais Regionais Federais ou dos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios que, em única ou última instância, tenham transitado em julgado, sempre que:
I – contrariarem tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
II – julgarem válido ato de governo local contestado em face de lei federal;
III – derem a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
§ 3º. A lei estabelecerá os casos de inadmissibilidade da ação rescisória especial.” (NR)
Art. 3º. O Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, no prazo de sessenta dias, projeto de lei necessário à regulamentação da matéria nela tratada.
Art. 4º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação, assegurada a aplicação das regras de processamento e julgamento dos recursos extraordinário e especial àqueles que houverem sido interpostos antes da entrada em vigor da regulamentação a que se refere o art. 3º desta Emenda.
Art. 5º. Ficam revogados o inciso III do caput do art. 102 e o inciso III do caput do art. 105 da Constituição.”.
Na Justificativa então apresentada, lê-se de pertinente para a espécie:
“Tal como reconhecido pelo Presidente do STF, o Ministro Cezar Peluso, em entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo de 28 de dezembro passado, o Brasil é o único país do mundo que tem na verdade quatro instâncias recursais. É certo que a ampla e quase inesgotável via recursal tem sido utilizada, grande parte das vezes, para fins meramente protelatórios, como estratégia da parte para furtar-se ao cumprimento da lei.
Na referida entrevista, o Presidente do STF esboça uma proposta de transformação dos recursos especial e extraordinário em ações rescisórias, como forma de evitar que a remessa de casos à apreciação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao STF seja utilizada como mero expediente de dilação processual. Com a transformação desses recursos em ações rescisórias, as decisões das cortes inferiores poderiam transitar em julgado, independentemente do prosseguimento da discussão no STJ ou no STF. Assim, poderiam ser promovidas execuções definitivas e a satisfação do direito material das partes seria feita mais celeremente do que sói ocorrer hoje em dia. Ademais, para se evitar a multiplicação de ações rescisórias dependentes de julgamento, poder-se-ia manter os atuais critérios de repercussão geral válidos para o STF, bem assim abrir possibilidade semelhante quanto às ações rescisórias que o STJ viria a julgar, em substituição ao atual recurso especial.
(…)
“Por entendermos que a ideia do Ministro Peluzo, transformada em norma jurídica, muito contribuirá para coibir condutas protelatórias das partes, assegurando uma prestação jurisdicional mais rápida e efetiva, apresentamos a presente proposta de Emenda à Constituição, que transforma o recurso extraordinário em ação rescisória extraordinária e o recurso especial em ação rescisória especial. Ante o exposto e dada a relevância da matéria, solicitamos o apoio de nossos Pares para sua aprovação.”
3. A Proposta do Ministro Cezar Peluso
O objetivo da Proposta de Emenda à Constituição sugerida pelo Ministro Cezar Peluso, a integrar o chamado “Pacto Republicano III”, é, de acordo com informações colhidas no sítio do Supremo Tribunal Federal na internet, introduzir dois novos artigos na Constituição Federal, arts. 105-A e 105-B, para “antecipar o trânsito em julgado” das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e pelos Tribunais Regionais Federais, criando regra, até agora inédita no direito brasileiro, segundo a qual a interposição de recursos extraordinários e recursos especiais não “… obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte”.
A redação proposta para os novos dispositivos constitucionais é a seguinte:
“Art. 105-A A admissibilidade do recurso extraordinário e do recurso especial não obsta o trânsito em julgado da decisão que os comporte.
Parágrafo único: A nenhum título será concedido efeito suspensivo aos recursos, podendo o Relator, se for o caso, pedir preferência no julgamento.
Art. 105-B Cabe recurso ordinário, com efeito devolutivo e suspensivo, no prazo de quinze (15) dias, da decisão que, com ou sem julgamento de mérito, extinga processo de competência originária:
I – de Tribunal local, para o Tribunal Superior competente;
II – de Tribunal Superior, para o Supremo Tribunal Federal.”.
4. A polêmica em torno de ambas as propostas de alteração da Constituição
A polêmica que ambas as propostas têm despertado é digna de destaque. São, não há por que olvidar, diversos segmentos que as defendem como forma de agilizar o desate dos processos jurisdicionais. O trecho copiado acima, extraído da Exposição de Motivos da PEC n. 15/2011, dá prova suficiente do acerto da afirmação.
É o caso de fazer referência, ainda que breve, a opiniões em sentido contrário.
Dentre as várias manifestações já produzidas nesse sentido, cabe destacar que o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, em ofício dirigido ao Ministro Cezar Peluso, teve oportunidade de criticar a iniciativa pelos seguintes motivos:
• A alteração do momento da formação da coisa julgada por Emenda à Constituição tem aptidão de comprometer cláusula pétrea, dada a abrangência do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
• É descabido alterar a Constituição Federal para impedir que algum magistrado, a depender das circunstâncias do caso concreto, modifique o plano infraconstitucional das eficácias das decisões judiciais. O “(dever-)poder geral de cautela” é ínsito ao (dever-) poder de julgar, razão pela qual não deveria prosperar o parágrafo único proposto para o art. 105-A.
• O sistema processual civil hoje vigorante já aceita a eficácia imediata das decisões proferidas pelos Tribunais da segunda instância, mesmo quando recorridos extraordinária e especialmente. Nesse sentido, a alteração constitucional mostra-se desnecessária e invasiva de terreno reservado para a lei à qual cabe criar ou alterar técnicas processuais para atingir os desideratos constitucionalmente impostos para o processo civil, penal ou trabalhista.
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Colégio de Presidentes do Instituto dos Advogados do Brasil e o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, entre outras diversas instituições, também já tiveram oportunidade de se posicionar contrários às referidas alterações constitucionais.
5. Confronto com o projeto de novo Código de Processo Civil
O objetivo do presente trabalho não é posicionar-se favorável ou desfavoravelmente àquelas propostas. Bem diferentemente, o que cabe relevar é que ambas adotam caminho substancialmente diverso daquele que o chamado “novo Código de Processo Civil” (v. n. 1, supra), elegeu para lidar com os problemas de sobrecarga de trabalho dos Tribunais brasileiros, inclusive a dos Tribunais Superiores, e buscar uma justiça mais célere e isonômica.
O Projeto de novo Código de Processo Civil traz diversas qualidades. Uma delas é enaltecer a posição do magistrado da primeira instância bem como a dos Tribunais de segunda instância.
Ao excluir, como regra, o efeito suspensivo da apelação (e, mais amplamente, de todos os recursos), passa a admitir a execução provisória das sentenças (e, mais amplamente, de todas as decisões judiciais) de maneira generalizada (art. 949 do PL 8.046/2010). A execução (ainda que provisória) de todas as decisões, desde a sentença proferida pelo juízo da primeira instância, é facilitada e, coroando evolução do direito processual civil brasileiro acerca do tema, tende a ser completa, verdadeiramente satisfativa, sem necessidade de prestação de caução (art. 507 do PL 8.046/2010).
A uniformização da jurisprudência e a criação de novas técnicas para alcançá-la, com todos os benefícios em termos de celeridade e eficiência processuais permeiam todo o Projeto. Tanto assim que, como muito bem escreve o Ministro Luiz Fux na Exposição de Motivos do Anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas que presidiu:
“A tendência à diminuição do número de recursos que devem ser apreciados pelos Tribunais de segundo grau e superiores é resultado inexorável da jurisprudência mais uniforme e estável.
Proporcionar legislativamente melhores condições para operacionalizar formas de uniformização do entendimento dos Tribunais brasileiros acerca de teses jurídicas é concretizar, na vida da sociedade brasileira, o princípio constitucional da isonomia.
Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional.
Dentre esses instrumentos, está a complementação e o reforço da eficiência do regime de julgamento de recursos repetitivos, que agora abrange a possibilidade de suspensão do procedimento das demais ações, tanto no juízo de primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que estejam tramitando nos tribunais superiores, aguardando julgamento, desatreladamente dos afetados.
Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, o já referido incidente de resolução de demandas repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta.”.
Esses e tantos outros mecanismos contidos naquele Projeto de Lei, bem entendidos e bem aplicados, terão o condão de conduzir a uma maior racionalidade e eficiência na atuação dos nossos Tribunais, de todos os níveis, sem as críticas que vêm sendo formuladas às referidas Propostas de Emenda à Constituição. Ademais, quaisquer críticas e aprimoramentos ao que se propõe no novo Código de Processo Civil merecem, no presente momento, ser dirigidos à Câmara dos Deputados onde tem tramitação o respectivo Projeto de Lei.
5.1 Pontos de atrito da PEC 15/2011 com o projeto de novo CPC
Sem prejuízo das considerações que ocupam o número anterior, cabe indicar, da forma mais direta e didática possível, os pontos de colidência mais salientes entre a PEC n. 15/2011 e o Projeto de novo Código de Processo Civil.
1. O Projeto de novo Código de Processo Civil não prevê nenhuma regulamentação para a “ação rescisória extraordinária” e nem para a “ação rescisória especial”.
a. Mesmo que se queira entender que sua disciplina infraconstitucional siga a da tradicional “ação rescisória”, é mister que essa regra seja expressa para esclarecer diversos pontos, dentre os quais, apenas ilustrativamente, os seguintes:
i. Tribunal de interposição.
ii. Prazo de ajuizamento.
iii. Juízo de admissibilidade e eventuais recursos daí derivados, a exemplo do que se propõe, no art. 996 do Projeto de novo Código de Processo Civil, com o “agravo de admissão”, recurso dirigido à decisão que indefere o trânsito do recurso extraordinário e/ou do recurso especial.
iv. Necessidade de citação e modalidades citatórias do réu.
v. Defesas a serem apresentadas pelo réu.
vi. Instrução da ação rescisória.
vii. Julgamento e recursos cabíveis.
viii. Possibilidade de suspensão da execução da decisão rescindenda.
ix. Consequências e responsabilidades derivadas do acolhimento da ação rescisória extraordinária e da ação rescisória especial.
x. Consequências do acolhimento ou da rejeição da ação rescisória extraordinária e da ação rescisória especial para os demais casos em que a mesma tese jurídica seja discutida.
2. Também não há, no Projeto de novo Código de Processo Civil, disciplina legislativa acerca da concomitância da “ação rescisória extraordinária” e da “ação rescisória especial”.
3. Não há regra sobre a possibilidade de ajuizamento das novas ações rescisórias e a ação rescisória “tradicional”, tal qual prevista nos arts. 919 a 928 do Projeto de novo Código de Processo Civil, já que são diversas as razões que justificam uma e outra medida.
4. Com a aprovação da PEC n. 15/2011, o Projeto de novo Código de Processo Civil trará disciplina ociosa acerca do recurso extraordinário e do recurso especial que, como todos os recursos do direito brasileiro, têm aptidão de impedir o trânsito em julgado, afastando, consequentemente, a pertinência da “ação rescisória extraordinária” e da “ação rescisória especial”.
5. O Projeto de novo Código de Processo Civil não regula a repercussão geral da “ação rescisória extraordinária” e sim do “recurso extraordinário”.
6. O Projeto de novo Código de Processo Civil não prevê a técnica dos “julgamentos repetitivos” para a “ação rescisória extraordinária” e nem para a “ação rescisória especial”. Seu art. 990 refere-se apenas aos recursos extraordinários e aos recursos especiais.
7. O Projeto de novo Código de Processo Civil nada diz sobre os casos de “inadmissibilidade da ação rescisória especial”, não regulamentando, pois, o que é exigido pelo proposto novo § 3º do art. 105 da Constituição Federal pela PEC n. 15/2011.
8. O art. 938, parágrafo único, do Projeto de novo Código de Processo Civil fixa a competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de justiça para atuarem no novel “incidente de demandas repetitivas” a partir de sua competência para julgamento do recurso extraordinário e do recurso especial, respectivamente. Com a PEC n. 15/2011, o critério deverá ser revisto.
9. A modalidade adesiva de interpor recursos extraordinário e especial (art. 951) atrita com as noveis ações rescisórias.
10. Não há previsão sobre a desistência da “ação rescisória extraordinária” ou da “ação rescisória especial” nas hipóteses em que a tese jurídica nelas discutida for selecionada pelo Supremo Tribunal Federal e/ou pelo Superior Tribunal de Justiça. O art. 952, parágrafo único, do Projeto de novo Código de Processo Civil prevê a hipótese para o recurso extraordinário e para o recurso especial.
11. A disciplina dos embargos de divergência (arts. 997 e 998) do Projeto de novo Código de Processo Civil tende a ficar ociosa, vez que aquele recurso pressupõe o julgamento de recurso extraordinário e especial e não das novas ações rescisórias.
12. Há também um atrito que pode ser chamado de “ideológico” entre a PEC n. 15/2011 e o Projeto de novo Código de Processo Civil, uma vez que nele se incentiva, mais que no atual, o fortalecimento dos juízos da primeira instância, ao extinguir, por exemplo, a regra do “efeito suspensivo” dos recursos de apelação (art. 949) e ao prever “honorários sucumbenciais recursais”, que, de acordo com o art. 87, § 7º, do Projeto, serão aplicados independentemente de penas devidas pela litigância de má-fé.
5.2 Pontos de atrito proposta do Ministro Cezar Peluso com o projeto de novo CPC
A mesma iniciativa que ocupa o número anterior deve guiar a exposição dos pontos de atrito entre a Proposta de Emenda à Constituição idealizada pelo Ministro Cezar Peluso e o Projeto de novo Código de Processo Civil:
1. O Projeto de novo Código de Processo Civil trata o recurso extraordinário e o recurso especial como instrumentos aptos a impedir a formação da coisa julgada. Tanto que o art. 489 do Projeto define a coisa julgada como “… a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.”.
a. Assim, precisará haver disciplina expressa sobre os diferentes momentos de formação da coisa julgada, sem prejuízo da discussão acadêmica sobre a necessidade da reconstrução do conceito de recurso para o direito brasileiro.
b. O próprio rol dos recursos, apresentado pelo art. 948 do Projeto de novo Código de Processo Civil, deverá fazer, prudentemente, a distinção relativa à dicotomia exposta acima, que terá assento constitucional.
2. A vedação do “efeito suspensivo” aos recursos, tal qual proposto pelo parágrafo único do art. 105-A, contraria o que o Projeto de novo Código de Processo Civil chama de “tutela de urgência” e “tutela da evidência” (arts. 269 a 286).
3. O Projeto de novo Código de Processo Civil não prevê e não regulamenta a “preferência” para julgamento dos recursos extraordinários e especiais em casos que, no sistema atual, mereceriam a atribuição de efeito suspensivo. Não há, ademais, qualquer garantia de que aquela “preferência” seja apta o suficiente para evitar os danos tuteláveis pelo efeito suspensivo a ser concedido consoante as circunstâncias de cada caso concreto.
4. A previsão do recurso ordinário, tal qual feita pelos arts. 981 e 982 do Projeto de novo Código de Processo Civil atrita com a proposta do art. 105-B da Constituição Federal que prevê hipóteses mais amplas que as disciplinadas na atualidade.
5. Tanto quanto no caso da “ação rescisória extraordinária” e da “ação rescisória especial”, não há qualquer harmonia com a Proposta do novo Código de Processo Civil quanto à necessidade de uniformização da jurisprudência dos Tribunais Superiores. Como a proposta de alteração constitucional é no sentido de que esses recursos não impedem o trânsito em julgado, dando ensejo a uma execução definitiva do julgado, não há como justificar que a tese neles discutida possa afetar outros processos similares já definitivamente julgados e já transitados em julgado após a manifestação dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais.
6. Não há regulamentação sobre eventual convivência ou prejudicialidade entre o recurso extraordinário e o recurso especial e a ação rescisória tradicional porventura ajuizada contra a mesma decisão.
7. Muitos dispositivos que se justificam no sistema atual e no projetado e que partem do pressuposto, tradicional entre nós, de que o recurso extraordinário e o recurso especial são técnicas de controle judicial no mesmo processo em que proferida a decisão que se pretende contrastar (aptos, pois, para evitar o trânsito em julgado), devem merecer exame mais demorado para verificar sua compatibilidade com a nova natureza jurídica pretendida para aqueles recursos. O mais saliente deles está nas conseqüências do acolhimento do recurso extraordinário e do recurso especial sobre os atos de execução (definitiva) já consolidados entre as partes e com relação a terceiros.
6. Outras questões a serem consideradas
Além dos pontos acima listados, existem diversos outros a merecer exame mais detido da comunidade jurídica.
• As estatísticas existentes a respeito dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal evidenciam que ele não vem atuando como “quarta instância”. É substancial a redução do número de recursos extraordinários admitidos e julgados naquela Corte desde a instituição da “repercussão geral”, verdadeiro filtro de contenção recursal criado pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e regulamentado pela Lei n. 11.416/2006.
o O mesmo se pode dizer com relação à técnica dos “Recursos Especiais Repetitivos” que, desde a Lei n. 11.672/2008, vem sendo empregada diuturnamente pelo Superior Tribunal de Justiça.
• Parece oportuna a discussão de outros temas relativos às funções exercitadas pelo Supremo Tribunal Federal para evitar a tão propalada “sobrecarga de trabalho” da Corte. A referência é, principalmente, aos casos em que aquela Corte funciona como primeiro grau de jurisdição, julgando diretamente diversos assuntos que, em ambiente Republicano, poderiam estar alocados em outros órgãos do Poder Judiciário, inclusive perante os juízos de primeira instância. O chamado “foro por prerrogativa de função”, para mencionar a mais emblemática (e polêmica) das hipóteses deve ser discutido nesse contexto.
o Pedindo vênia pela insistência: pretender reduzir, mais uma vez, o acesso ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, parece demasiado quando aquelas Cortes desempenham inúmeras outras funções que, evidentemente, desviam-nas de sua missão primeira: dizer a última palavra sobre a Constituição Federal e sobre o direito infraconstitucional federal fornecendo diretrizes duradouras de sua interpretação para todo o território nacional.
• Ademais, e diferentemente do que se dá em outros países, as características da Constituição brasileira — e, bem assim, da dinâmica federativa — acarreta, por si só, um contencioso constitucional e infraconstitucional federal de enormes proporções. Não se pode deixar de levar essa peculiaridade em conta para verificar se é (ou não) possível reduzir a carga de trabalho dos Tribunais Superiores relativa aos julgamentos dos recursos extraordinários e especiais. Há, por assim dizer, um mínimo irredutível de questões constitucionais e infraconstitucionais federais que têm que ser decididas por aquelas Cortes, sob pena de o direito federal ser aplicado diferentemente em cada Região e em cada Estado do país. As peculiaridades do federalismo brasileiro não podem ser desconsideradas para legitimar a internação de experiências e realidades muito diferentes das nossas.
Os temas acima listados são meramente ilustrativos. Eles poderiam ser desdobrados em diversos outros para demonstrar que uma maior eficiência processual no âmbito do Judiciário brasileiro — dos Tribunais Superiores aos órgãos de primeira instância (e nas diversas esferas da justiça: civil, penal, trabalhista, eleitoral e militar) — passa necessariamente por outra ordem de considerações, muito distantes de alterações normativas (constitucionais ou legais). É mister pensar sobre gestão, infraestrutura, forma de recrutamento de magistrados, servidores e auxiliares da justiça, investimentos substanciais em informatização, meios não jurisdicionais de resolução de conflitos, etc.
Não é o caso, contudo, de ir além. O propósito dessa muito breve manifestação é o de expor topicamente alguns pontos sobre os quais — ou a partir dos quais — a comunidade jurídica precisa debater para perseguir um Judiciário mais eficiente, inclusive no que diz respeito à atuação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
7. Considerações finais
Os pontos de atrito listados pelos números 5, 5.1 e 5.2 querem ser apenas ilustrativos.
Nenhum deles, é certo, quer ser óbice intransponível. Eles apenas querem demonstrar o quão longe estará o Projeto de novo Código de Processo Civil de alcançar seu declarado objetivo de acelerar a prestação da tutela jurisdicional em todos os níveis jurisdicionais caso ele não seja harmonizado, ainda em sua tramitação legislativa, com o que se propõe de alteração no e para o plano constitucional.
Tão verdadeira a observação do parágrafo anterior que o art. 3º da própria PEC n. 15/2011 tem a seguinte redação: “Art. 3º. O Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, no prazo de sessenta dias, projeto de lei necessário à regulamentação da matéria nela tratada.”.
Mas também não se pode negar a possibilidade de pensar no oposto: entendendo que um novo Código de Processo Civil, a partir do que está em trâmite na Câmara dos Deputados, possa ser a forma mais acertada de alcançar um Judiciário mais eficiente, por que não descartar a ideia de se alterar a forma de acesso ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça pela via difusa?
O que não se pode, contudo, é deixar de observar quão contraditório é um novo Código de Processo Civil ser promulgado em defasagem com a (re)estruturação constitucional do papel a ser desempenhado pelos Tribunais Superiores na tarefa de uniformizar o direito constitucional e o infraconstitucional federal em todo território nacional sem levar em conta, como deve ser levado, as peculiaridades da federação brasileira.
Se essas muito breves linhas despertarem no leitor alguma preocupação a respeito do tema, seu objetivo terá sido suficientemente alcançado.
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