O novo regime de pagamento dos Precatórios (EC 62/09) e as velhas discussões

Autor: Diogo L. Machado de Melo, advogado integrante de Edgard Leite Advogados Associados.

 

Em dezembro de 2009, a temida “PEC dos precatórios” – tal como pronunciado pelos órgãos de imprensa – foi aprovada. A toque de caixa, entrou em vigor nova Emenda Constitucional, a de número 62. Com ela, credores da Fazenda Pública – com ou sem precatórios – ainda não sabem o que fazer. Pedidos de seqüestros de rendas públicas em curso, compensações tributárias propostas judicialmente, credores, após anos a fio de renegociação de suas dívidas, foram totalmente paralisados.

Conta-se nos corredores do Tribunal de Justiça – o que esse subscritor, mesmo tendo ouvido, insiste em não acreditar, seja pela sempre necessária presunção de boa-fé, seja por (ainda) acreditar que o processo judicial não é um campo minado – que não tem sido expedido alvarás de levantamento de quantias seqüestradas a mais de 120 dias. Aliás, quem é freqüentador assíduo da “sala 309” do Tribunal ouviu dos funcionários a existência de ordem de expedição de um “despacho” coletivo, oriundo da Presidência do Tribunal, atingindo todos os processos, com o seguinte teor: “tendo em vista a Emenda Constitucional nº 62, publicada em 10.12.2009, manifestem-se as partes”, o que certamente tem contribuído, dada a sua origem, para disseminação da insegurança entre todos. Vale citar que para muitos, a nova ordem constitucional seria apta a extinguir todos os pedidos de seqüestro em curso.

Não se ignora a louvável iniciativa da Ordem dos Advogados do Brasil que propôs, logo no dia seguinte da promulgação, Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF (ADI 4357/DF). Segundo informações divulgadas na imprensa, o relator, Min. Ayres Brito, pretende dar “rito abreviado” ao processo, requisitando informações a todas as Secretarias da Fazenda dos Estados. Mas não podemos ignorar precedentes importantes daquela Corte. Para que o leitor não se iluda e tenha ao menos uma referência, ainda está pendente de apreciação o pedido de liminar da ação direta nº 2356/DF, distribuída no dia 28.11.2000 (!), ao então Min. Néri da Silveira que, a prevalecer a posição (prática) do Supremo, tende a ser extinta, dada a perda do objeto.

Discussões acadêmicas de lado – sempre presentes, até mesmo por dever de ofício – restam-nos variados problemas práticos, (muitos ainda insolúveis) envolvendo o destino dos negócios e da própria vida de nossos clientes. Afinal, ultrapassados questionamentos como o da (in)constitucionalidade formal da alteração constitucional, dada a não observância de rito (CF, art. 60, § 2º e RISF, art. 362), violação dos princípios da igualdade e da própria dignidade humana, violação da segurança jurídica, razoabilidade, dentre outros muitos, resta-nos a prática, o dia-a-dia de nossos clientes, aflitos com a sagrada expectativa (rectius: direito adquirido) lancetado por mais um calote que, ao se denota, tem recebido guarida de importantes Tribunais do país.

Ainda que o julgamento da Adin não saia (aliás, sairá?), nunca é demais lembrar que a criatividade, a proatividade e a busca da esperada eficiência das Procuradorias continua e continuará sendo prestigiado pela Constituição, tanto é verdade que faz parte do próprio texto da Emenda recentemente promulgada, o que não poderia ser diferente eis que a moralidade e eficiência, exigidos da Administração (CF, art. 37), não mudaram com a emenda e, como já expresso nesse informativo, nossa Constituição veda o retrocesso às políticas públicas.

De forma resumida, a Emenda nº 62 (i) institui a precedência para o pagamento de débitos cujos titulares tenham mais de 60 anos ou sejam portadores de doença grave, preferência essa limitada a 3 vezes o valor fixado em lei como sendo ‘obrigação de pequeno valor’. Nota-se que há na Emenda uma armadilha: a idade será conferida “na data da expedição do precatório”, revelando discriminação infundada, entre aqueles que ao tempo da expedição não tinham 60 (sessenta) anos de idade e hoje aguardam na fila; (ii) fixação de patamar mínimo para que Estados e Municípios fixem suas obrigações de pequeno valor quando editarem lei própria; (iii) admissibilidade de seqüestro de contas públicas quando o valor necessário ao pagamento do devido não tenha sido previsto na lei orçamentária (ou seja, o seqüestro não desapareceu!); (iv) admissibilidade de compensação antecipada (que, para OAB, seria inconstitucional, dada sua obrigatoriedade) quando da expedição do precatório, obrigando o Judiciário abater do valor devido os eventuais débitos do credor com a Fazenda, ainda que não inscritos em dívida ativa; (v) vinculação de atualização monetária aos índices de poupança, contrariando a jurisprudência do próprio STF, que pelo menos desde 1992, com Min. Moreira Alves, afasta a TR como índice de correção da moeda; (vi) convalidação das cessões de crédito, desde que a operação seja informada à entidade devedora (tal como preconiza o Código Civil) e informado ao Judiciário para fins de organização; (vii) exigência de lei complementar para fixação de regime especial de pagamento de precatórios de Estados, DF, Municípios, podendo, para tanto, fixar vinculações à receita corrente líquida, assim como forma e prazo de liquidação de débitos. Ainda que dependente de Lei Complementar, institucionaliza os leilões de precatórios.

O art. 97 do ADCT traz nova forma de pagamento aos precatórios que se encontram em mora, que poderá ocorrer de duas formas: depósito em conta especial; ou adoção de regime especial de pagamento pelo prazo de até 15 (quinze) anos. Dentro do mencionado regime especial de pagamento, 50% (cinqüenta por cento) dos valores destinados a tal fim, serão utilizados para pagamento de precatórios na ordem cronológica, respeitadas as preferências constitucionais. Os outros 50% (cinqüenta por cento) serão destinados ao pagamento de precatórios por meio de leilão, pagamento à vista de acordo com a ordem cronológica e crescente do valor, e por meio de conciliação com os credores.

Alguns autores dizem que justamente pela data da promulgação da emenda ficará prejudicada a adoção de tal regime em relação ao exercício financeiro do ano de 2010, tendo em conta que o orçamento dos entes públicos para o ano seguinte já estaria se encerrado Os reflexos da implantação do novo regime de pagamento, por ato “voluntário” da Fazenda Pública, serão vistos tão somente no ano de 2011.

Mas vale o registro. Em 31/12/2009, foi publicado no Estado de São Paulo decreto sobre instituição do regime especial de pagamento de precatórios (Decreto 55.300/2009), que entrou em vigor no dia 1º deste ano de 2010. Segundo o Decreto Estadual, para o pagamento dos precatórios vencidos e a vencer, já serão depositados mensalmente, no último dia útil de cada mês, em conta própria, 1/12 (um doze avos) do valor correspondente a 1,5% (um e meio por cento) da receita corrente líquida apurada no segundo mês anterior ao mês do depósito, na forma do § 3º e seus incisos, do artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A Secretaria de Estado de Fazenda divulgará mensalmente o valor da receita corrente líquida apurada. Dos recursos que, nos termos do Artigo 1º, forem depositados em conta própria para pagamento de precatórios judiciários, serão utilizados 50% (cinqüenta por cento), para o pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresentação, observadas as preferências definidas no § 1º do artigo 100 da Constituição Federal, para os precatórios do mesmo ano, e no § 2º daquele mesmo artigo, para os precatórios em geral; 50% (cinqüenta por cento), na forma que oportunamente vier a ser estabelecida pelo Poder Executivo, em conformidade com o disposto no § 8º e seus incisos, do novo artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Instituiu-se também, junto à Procuradoria Geral do Estado, o Sistema Único de Controle de Requisitórios Judiciais, no qual será mantido o registro cadastral e de pagamentos de todos os requisitórios da administração direta e indireta, para fins de controle estatístico, verificação dos pagamentos e conferência da ordem em que serão realizados.

Ainda segundo o novo regime constitucional, a aplicação dos recursos restantes dependerá de opção a ser exercida por Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, por ato do Poder Executivo, que poderá ser aplicada isoladamente ou simultaneamente: destinados ao pagamento dos precatórios por meio do leilão; destinados a pagamento a vista de precatórios não quitados; destinados a pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida por lei própria da entidade devedora, que poderá prever criação e forma de funcionamento de câmara de conciliação. Os leilões serão realizados por meio de sistema eletrônico administrado por entidade autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários ou pelo Banco Central do Brasil, admitirão a habilitação de precatórios, ou parcela de cada precatório indicada pelo seu detentor, em relação aos quais não esteja pendente, no âmbito do Poder Judiciário, recurso ou impugnação de qualquer natureza, permitida por iniciativa do Poder Executivo a compensação com débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra devedor originário pela Fazenda Pública devedora até a data da expedição do precatório, ressalvados aqueles cuja exigibilidade esteja suspensa nos termos da legislação e ocorrerão por meio de oferta pública a todos os credores habilitados pelo respectivo ente federativo devedor. A competição por parcela do valor total ocorrerá a critério do credor, com deságio sobre o valor desta.

Mas o que acontecerá com os processos em curso?

Muita discussão está porvir. Por isso, vale como premissa os preciosos ensinamentos de Agostinho Alvim, um dos maiores civilistas que o país já teve. Inadimplemento “é a falta da prestação devida; qualquer que seja seu objeto, o credor tem o direito de receber aquilo que foi estipulado no momento da celebração da obrigação; haverá inadimplemento quando a obrigação não for cumprida de forma útil ao credor” o que, segundo o mestre, representa uma das poucas situações de efetivo poder de escolha que o credor tem na relação obrigacional.

Desta forma, ainda que estejamos diante de um regime constitucional de pagamento de dívidas da Fazenda (que certamente limita, em muito, esse poder de escolha do particular), os ensinamentos são válidos, lembrando, adicionalmente, que a própria Emenda traz previsões de seqüestro (art. 100, § 6º) e que a nova redação do art. 97 do ADCT ainda admite “acordos conciliatórios”, afastando a aplicabilidade de alguns dispositivos do novo texto para casos em que houver “mora na quitação dos precatórios” o que, em nosso interpretar, é bem diferente de hipóteses em que o inadimplemento já estiver reconhecido e sendo executado (efetivado) pelo Poder Judiciário. Segundo a lógica deôntica, uma fase é o (dês)cumprimento da obrigação prevista na norma. Outra é seu cumprimento por força estatal.

Partindo dessas premissas, entendemos que aqueles que não tiverem obtido a expedição de precatório, deverão se sujeitar ao regime de pagamento inaugurado pela Emenda nº62, mas não estará impedida a criação de uma sistemática própria de pagamento de créditos, havendo interesse, como hipóteses de dação em pagamento e cessão de créditos. Todavia, ainda que discutível a amplitude dos §§ 13º e 15º, do art. 97, do ADCT, para aqueles que já possuem precatórios expedidos e parcelas inadimplidas, entendemos que a Emenda não prejudica, se existente, o prosseguimento de procedimento de seqüestro – dado o fato que inadimplemento já existe, ocorrido à luz da Emenda 20, estando pendente, apenas, seu cumprimento – facultando o credor a possibilidade de se negociar novas formas de cumprimento da obrigação no curso do processo, segundo, inclusive, o novo regime.

Um terceiro cenário seria das hipóteses de seqüestros já decretados, hoje inadvertidamente paralisados diante da promulgação da nova Emenda. Ora, ainda que discutível a existência de direito adquirido nos cenários anteriores – o que se admite, apenas, para argumentar – entendemos que nesse caso, dado o fato que não só o inadimplemento, mas, efetivamente, atos de efetivação pelo Poder Estatal, já se mostram consumados, não haveria motivos para se negar (ou suspender) o cumprimento da ordem, mostrando-se inoportuno e incabível recurso protelatório sob o fundamento da inauguração de um novo regime constitucional.

Mas é preciso esperar para o amadurecimento das posições. Esperar e ter fé, ainda que fé demais não cheire bem.

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