Autora: Marcia Heloisa Pereira da Silva Buccolo, consultora jurídica do escritório Edgard Leite Advogados Associados.
O ano de 2009 foi bastante significativo para a área do Direito Administrativo, em especial por apresentar novos caminhos para o início da nova década, quanto à perspectiva de mudança de posturas, seja por parte do Executivo, seja dos órgãos de controle — Tribunais de Contas, Ministério Público — do Judiciário, ou mesmo do Legislativo, que, certamente permitirão maior agilidade e eficiência às decisões e procedimentos administrativos.
Examinaremos, ainda que ligeiramente, as ações concretas nesse sentido:
A) Poder Executivo: O estabelecimento de parcelas entre União, estados e municípios para implantação eficiente de projetos e programas
O ano de 2009 foi marcado por iniciativas integradas, envolvendo a conjunção de esforços, financeiros e estratégicos para implantação de importantes programas de grande interesse da coletividade. O que era mera expectativa, ou projetos locais, tímidos e isolados, começou a se materializar em programas de maior alcance e efetividade. São vários os exemplos de programas focados em infraestrutura, saneamento básico, habitação, etc., que, envolvendo recursos federais e locais (estaduais e municipais), estão sendo implementados com eficiência e racionalização no emprego dos recursos públicos.
Sem entrar no mérito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), cuja avaliação não cabe nestas reflexões, o fato é que a implementação do PAC, ainda que não tenha logrado a velocidade esperada, tem tornado realidade programas e projetos que, por meio de iniciativa isolada da administração local, teriam maiores dificuldades de implementação.
Para tanto, por parte da administração federal, houve a redução em favor dos estados e municípios de até 40% no valor da contrapartida do PAC, no caso de obras de saneamento e habitação. De sua parte, para a execução de tais empreendimentos os municípios e estados participam com 10% a 20% do total do investimento.
No setor da habitação, programa específico foi elaborado para contemplar os municípios com menos de 50 mil habitantes, perfazendo um total de recursos estimados em subsídios de R$ 1 bilhão para famílias com renda de até três salários mínimos. Tais iniciativas foram necessárias — e eis ai, provavelmente, a maior razão de sua efetividade — a partir da constatação de que os recursos públicos estão e ficarão ainda mais escassos. Resulta clara a conclusão de que o tempo de soluções isoladas, paliativas e a curto prazo também já passou.
Ademais disso, a demanda por soluções eficientes, que impliquem em maior racionalização no emprego das verbas públicas, e resposta mais ágil e efetiva do poder público exigem uma ação organizada, planejada, racional e efetiva por parte dos diversos níveis de governo, afastando soluções pontuais, ineficientes e antieconômicas.
Não se pode mais admitir que os recursos públicos sejam utilizados, ou melhor, desperdiçados na realização de projetos e de programa mal planejados e ineficientes. É inquestionável a importância das parcerias entre os governos federal, estaduais e municipais, para o desenvolvimento de projeto e programas únicos, e de maior a abrangência, o que traz como benefício adicional a diminuição das enormes diferenças de tratamento das diversas populações locais.
Nesse sentido, são mitigadas as diferenças regionais, em especial em áreas fundamentais, por meio do desenvolvimento de “políticas estruturantes”, que possibilitam macro-programas envolvendo saneamento, transporte, habitação, saúde, educação, informação e conhecimento, meio ambiente, associadas à uma política de amplo espectro de atendimento à população brasileira e de reforço do pacto federativo. Outro exemplo de solução criativa e eficiente é a formalização de convênios por meio de consórcios intermunicipais a fim de viabilizar a execução de programas nacionais, de relevante interesse da coletividade.
No mesmo sentido, são emblemáticas as ações desenvolvidas pelo governo federal em conjunto com estados e municípios, em especial, na área de saúde. Exemplo recente tem-se no caso do controle da gripe A (H1N1) ou influenza A. Foram articuladas ações conjuntas das autoridades sanitárias federais e estaduais, de monitoramento e ações de vigilância; monitoramento de portos, aeroportos e fronteiras; recomendações aos viajantes; notificação de casos; assistência aos casos e contatos; divulgação nos meios de comunicação; estruturação das redes de vigilância e de atenção à saúde; aquisição de insumos e tratamentos; desenvolvimento de capacidade para produção da vacina contra o novo vírus, entre outras iniciativas conjugadas.
B) Órgãos de fiscalização e controle: A mudança de postura dos Tribunais de Contas e do Ministério Público
No caso dos Tribunais de Contas, foi fundamental o aparelhamento e treinamento especializado dos agentes da fiscalização que, hoje, reúnem condições técnicas de acompanhamento das obras em tempo real, exigindo da parte da administração em geral maior atenção, vigilância, busca de adequados mecanismos de gestão e acompanhamento dos projetos em desenvolvimento.
No mesmo sentido, medidas pró-ativas estão sendo adotadas no intuito de evitar o mau emprego dos recursos públicos. O Tribunal de Contas da União tem adotado, sistematicamente, recomendações aos diversos órgãos da administração, que se utilizam de recursos federais, no sentido de somente instaurarem procedimentos licitatórios, sem que sejam precedidos de projetos básicos/executivos consistentes, cotações preços confiáveis e orçamentos criteriosos.
Tais providências, inclusive, preconizadas pela Lei Federal 8.666/93 — mas quase nunca adotadas — evitarão, na prática, que as obras sofram aumentos significativos em suas previsões iniciais, que sejam formalizados um sem número de termos de alteração contratual, que sejam desperdiçados recursos públicos, pela falta de previsão de valores corretos e suficientes para responder pelas despesas decorrentes de sua execução.
Em complemento, os ilustres representantes do Ministério Público têm adotadas iniciativas — ainda tímidas, é bem verdade — no sentido de não somente apontar irregularidades, depois de consumadas, de embargar obras e projetos, sempre que planejados sem o devido cuidado técnico, inadequados ou, ainda, contrários ao interesse público.
Importante anotar uma postura mais efetiva e eficaz do Ministério Público, participando efetivamente das soluções dos problemas vivenciados pela administração,de forma que, em vez de sustar a execução de determinado contrato — participe de forma concreta, direta e tempestiva da construção da solução mais adequada para afastar determinado impasse ou contornar, de modo eficiente, um problema real.
A participação do Ministério Público na construção das soluções tem muito mais a contribuir para a eficaz proteção do interesse coletivo, sua principal razão de atuar, do que a atuação clássica na propositura de ações judiciais para apenar os responsáveis por atos prejudiciais ao erário ou à comunidade.
C) O cenário do Direito Administrativo em 2009: alguns eventos de relevância
C.1) Atuação do Legislativo: Projeto de Lei 7.709/07
O Projeto de Lei 7.709 de 24 de janeiro de 2007, que tem por objetivo promover alterações na lei federal de licitações (Lei 8.666/93), já teve sua redação final aprovada, e acha-se aguardando a sua inclusão na pauta da Ordem do Dia para aprovação no Senado Federal.
As principais alterações previstas no referido Projeto de Lei referem-se aos seguintes aspectos:
a) Possibilidade de utilização da internet para divulgar de informações oficiais, através de sítio oficial da administração pública;
b) Possibilidade de utilização de processo licitatório por meio de sistema eletrônico, para qualquer uma das modalidades de licitação previstas na Lei Federal 8.666/93;
c) Possibilidade de utilização da modalidade pregão, a todas as modalidades de licitação previstas na Lei 8.666/93;
d) Inclusão de fase saneadora, destinada a escoimar os vícios, erros e falhas na documentação dos licitantes, através da utilização de providências e procedimentos objetivos, previstos na lei e no edital;
e) Diminuição dos prazos e fases recursais (aqui um ponto de forte censura, posto que praticamente extingue a possibilidade de apresentação de recurso, o prazo a ser estabelecido é curto demais: 2 dias úteis);
f) Alteração dos valores limite para cada uma das modalidades de licitação, que passam a ser:
i. Convite: até R$ 340 mil (atualmente é R$ 150 mil);
ii. Tomada de Preços: que passa a ser até R$ 3,4 milhões (atualmente, R$ 1,5 milhão);
iii. Concorrência: passa a ser exigida a partir de R$ 3,4 milhões (atualmente, acima de R$ 1,5 milhão).
g) Possibilidade de inversão das fases da licitação: abertura das propostas de preços, depois documentos de habilitação. Exceção: não poderá ocorrer tal inversão nos casos de licitação na modalidade concorrência e de contratação de serviços ou compras de grande vulto (artigo 6°, caput e inciso V da Lei 8.666/93);
h) Aplicação de penalidade de suspensão temporária do direito de licitar e contratar com administração ao licitante vencedor que não detenha todas as condições exigidas para fins de habilitação. Note-se que tal apenação tem caráter obrigatório, sendo irrelevante, para tanto, ter o licitante agido de boa ou má-fé. Tal medida de aplicação indiscriminada não nos parece adequada vez que na prática é sabido que inúmeras vezes os erros ocorrem por mera distração ou descuido do licitante.
i) Definição das fases finais da licitação: homologação da licitação, para, depois, promover-se a adjudicação do objeto a ser contratado.
C.2) Fatos relevantes na atuação do Judiciário
– Edição da Súmula 354 pelo Superior Tribunal de Justiça.
Súmula 354: "A invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária." (Referências: RESP 819.426/GO, RESP 893.871/MG, RESP 938.895/PA, RESP 590.297/MT e RESP 964.120/DF)
A Constituição Federal, ao cuidar da desapropriação, em seu artigo 84 determina que "compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei".
A Lei 8.629/93, no artigo 2º, parágrafo 6º, em sua redação atual, prevê que o imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e nessas condições, deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações. Donde se conclui que a invasão do imóvel a ser desapropriado impede a realização da vistoria, que é condição essencial para que ocorra a sua expropriação.
Na mesma esteira do sumulado pelo STJ, vem o pronunciamento do STF. Para se conformar a tal entendimento, a Lei 8.629/93, na redação que lhe conferiu a MP 2.183/01, deixou patente o objetivo de desestimular as frequentes invasões, para forçar a desapropriação para fins de reforma agrária.
– Acórdão do STJ que consagrou entendimento no sentido de que a declaração de nulidade de contrato administrativo não exime a administração da obrigação de indenizar o contratado pelos serviços, obras ou fornecimento de produtos que lhe incumbia realizar.
Decisão do STJ : Contrato considerado nulo não exime a administração da obrigação de indenizar o contratado pelos serviços e obras efetivamente executados ou pelo fornecimento de produtos que já foram entregues.
O fundamento para tal decisão está na impossibilidade de haver enriquecimento sem causa. Trata-se de ação movida contra o estado de Sergipe, por meio da qual a autora, empresa Emlimge Serviços Gerais Comércio e Representação Ltda., pleiteou a indenização de cerca de R$ 26 mil em decorrência de contrato para fornecimento de 296 mil espigas de milho à rede escolar estadual, no valor de aproximadamente R$ 59 mil.
A administração estadual contestou a ação afirmando que houve prática de irregularidades no curso da licitação, razão pela qual ocorreu a suspensão do pagamento do crédito à empresa. Em seu voto, o relator, ministro Mauro Campbell Marques, destacou ser pacífico o entendimento do STJ de que a nulidade de contrato administrativo não exonera a administração pública de reembolsar o contrato pelo serviço já prestado, por parte da obra já executada ou pelos produtos já entregues, sem que haja, com isso, violação do artigo 59 da Lei 8.666/93, porque, do contrário, haveria enriquecimento sem causa.
O artigo 59 da Lei Federal de Licitações dispõe que: "A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos".
Em seu voto, o ministro relator observou que, "realizado o negócio jurídico com o recebimento do produto, compete ao município honrar seus compromissos, sob pena de enriquecimento ilícito".
Observações finais
Ao encerrar a primeira década do século XXI, 2009 marca o início do caminho inexorável que devem seguir administração pública, órgãos de fiscalização e controle, e da efetiva atuação do Judiciário, até mesmo para corrigir omissões ou falhas de atuação do poder público.
Impende observar que, não obstante haver a necessidade de assegurar a autonomia dos poderes, na inafastável preservação do pacto federativo, igualmente verdadeira é a tendência de, ao longo dos próximos anos, ser a satisfação do interesse coletivo, um compromisso de todos: Executivo, Legislativo, Tribunais de Contas, Ministério Público e Judiciário, sendo que todos (cada um dentro da sua esfera de competência), darão o seu quinhão de contribuição para o enfrentamento dos reais desafios e a identificação das soluções para o equacionamento dos problemas do cotidiano da sociedade brasileira.
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