A arbitragem e os contratos administrativos

Autor: Giuseppe Giamundo Neto, sócio do escritório Edgard Leite Advogados Associados.

 

No direito administrativo vigora o princípio da legalidade, segundo o qual a administração somente poderá atuar se o fizer em estrita observância às disposições legais a ela aplicáveis e às quais deve se sujeitar. Desse modo, para que o Estado ou as empresas estatais prevejam a arbitragem em seus contratos, é imperioso que sejam detentores de habilitação legal, ou seja, que a lei os permita a tanto.

A partir da edição da Lei de Arbitragem – a Lei nº 9.307, de 1996 -, um intenso debate se instaurou acerca da possibilidade de utilização desse instituto no âmbito dos contratos administrativos, especialmente aqueles regidos pela Lei nº 8.666, de 1993, tendo em vista a inexistência de uma previsão expressa a respeito. Recentemente, a questão voltou à tona com uma decisão da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitindo a possibilidade de a administração pública se valer da arbitragem para matérias envolvendo o direito público disponível, entendido como aquele que possui natureza contratual ou privada (Recurso Especial nº 11.308 do Distrito Federal).

O fundamento que sempre pautou a interpretação quanto à possibilidade de utilização da arbitragem nos contratos administrativos vem disposto no artigo 54 da Lei nº 8.666, segundo o qual devem ser aplicados aos contratos administrativos, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.

Com a edição da Lei das Concessões – a Lei nº 8.987, de 1995 -, passou a haver previsão expressa sobre a necessidade de inclusão de formas extrajudiciárias de solução das controvérsias nos contratos de concessão. Como só há três modos de solucionar amigavelmente controvérsias contratuais – por meio da mediação, da conciliação e da arbitragem -, não restava dúvida que a lei permitia a utilização desse instituto, embora sem explicitá-lo como uma das modalidades que devem ser adotadas.

Contudo, para afastar qualquer dúvida quanto à aplicação do instituto, a Lei nº 11.196, de 2005, teve o condão de explicitar o uso da arbitragem nos contratos de concessão, ao estabelecer que "o contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa".

Desse modo, a aplicabilidade e legalidade da arbitragem para a solução de conflitos decorrentes de contratos de concessão se pacificou. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU) reviu seu entendimento anterior e passou a admitir tal mecanismo nesses contratos, desde que as cláusulas objeto de julgamento pelos árbitros não ofendam o princípio da legalidade e o da indisponibilidade do interesse público.

Desde então, diversas outras leis passaram a prever a possibilidade de utilização do instituto da arbitragem em contratos administrativos, valendo citar, exemplificativamente, a Lei nº 10.433, de 2002, que trata da criação do mercado atacadista de energia elétrica, pela qual as agências reguladoras têm se utilizado freqüentemente da cláusula arbitral em seus contratos, a Lei nº 9.478, de 1997, que dispõe sobre a política energética nacional, e mais recentemente a Lei das Parcerias Público-Privadas (PPPs) – a Lei nº 11.079, de 2004.

Não se pode deixar de observar, ademais, que a Lei de Arbitragem de maneira alguma veda ou restringe a participação do Estado na utilização de tal procedimento. Muito ao contrário, a redação de seu artigo 1º estabelece que "as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis". O sentido da palavra "pessoas", na forma utilizada pela lei, abrange, inclusive e além das pessoas de direito privado, as pessoas jurídicas de direito público interno, nos termos da definição dada ao termo pelo Código Civil. Portanto, também sob o prisma da Lei de Arbitragem, entendemos que tal procedimento é plenamente viável nas relações contratuais de direito público, ficando restrito seu uso, contudo, aos litígios referentes a direitos patrimoniais disponíveis.

Através de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, parece restar clara a possibilidade de utilização da arbitragem em contratos administrativos, mesmo aqueles regidos pela Lei nº 8.666, inexistindo impedimento para que os entes governamentais optem por esse mecanismo para resolver os conflitos sobre direitos disponíveis oriundos de contratações firmadas com particulares, obtendo decisões definitivas com a mesma eficácia de uma sentença judicial , rápidas e especializadas.

A grande insegurança, contudo, e que torna tal prática vulnerável a questionamentos, deve-se ao fato de inexistir regulamentação específica sobre tal mecanismo na Lei nº 8.666. Daí a necessidade de uma alteração pontual da lei para garantir sua possibilidade. Vale destacar, ademais, que o julgamento, pelo tribunal arbitral, de desavenças na execução ou cumprimento do contrato administrativo não fere o princípio da supremacia do interesse público, eis que a questão discutida, ao invés de ser julgada pelo Poder Judiciário, será apreciada por árbitros imparciais que seguirão regras pré-estabelecidas, dentre as quais encontra-se a vedação a matérias que envolvam direitos indisponíveis. Além disso, os árbitros jamais poderão distanciar seus entendimentos dos princípios contidos no caput do artigo 37 da Constituição Federal, bem como dos demais princípios que regem o direito administrativo.

A arbitragem tem se mostrado um instrumento extremamente útil para assegurar a regularidade na execução de serviços públicos e para manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, na medida em que permite que se chegue rapidamente à composição dos conflitos envolvendo direitos disponíveis, mediante decisões tomadas por especialistas no específico assunto controvertido. A recente confirmação de compromisso arbitral em sede de contrato administrativo pelo STJ não apenas vai ao encontro da evolução legislativa e doutrinária sobre a matéria, como também é reflexo do dinamismo que tem se verificado nas formas de relação entre o poder público e o particular.

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